A Fuga de Cuba
- Alberto Carvalho - Narrador

- há 6 dias
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Atualizado: há 3 dias
Há cidades que se esvaziam com estrondo — sirenes, tanques, gritos, bandeiras a arder — e há cidades que se esvaziam como um corpo que perde sangue devagar. Havana, hoje, tem muito desta segunda espécie: uma espécie de hemorragia mansa, insistente, que não faz manchetes todos os dias mas muda tudo, pedra a pedra, rua a rua, olhar a olhar.
Quando se fala de Cuba, em Portugal, ainda se fala muitas vezes como quem abre uma gaveta antiga: sai de lá um cheiro de cartaz, um resto de canção, a ideia vaga de um romance político.
O problema é que o romance terminou há muito e, no lugar dele, ficou uma vida dura, de sobrevivência prática, feita de faltas sucessivas. Falta luz. Falta gasolina. Falta comida. Falta futuro. E quando o futuro falta, as pessoas não “partem”: fogem. Mesmo quando vão de avião. Mesmo quando levam uma mala pequena. Mesmo quando não correm.
Há um símbolo que me ficou preso (e eu desconfio sempre de símbolos, porque são a matéria preferida de quem manda): uma torre.
Um hotel alto, brilhante, de vidro e aço, erguido durante anos, como se o país estivesse a construir um milagre. Um edifício com centenas de quartos que a maioria dos cubanos nunca poderá pagar, nem sequer uma noite, nem sequer uma bebida no bar. Um pedaço de modernidade plantado num lugar onde o quotidiano voltou a ter filas e apagões, e onde a elegância, para muita gente, é apenas a arte de disfarçar a fome.
O edifício existe para quem chega com moeda estrangeira e para quem manda, claro. Existe também como recado: “aqui manda quem constrói”. E, numa ilha onde o Estado se confundiu durante décadas com a vida inteira, há poucas entidades mais temidas do que as que controlam o dinheiro, os hotéis, os portos, as importações, as saídas e as entradas.
A torre, por isso, não é só um hotel. É um modo de dizer: o país pode estar de joelhos, mas o poder mantém-se de pé.
Há um problema: uma torre não enche sozinha. E as torres, quando não enchem, tornam-se aquilo que ninguém quer admitir — monumentos ao vazio.
Aquilo que deveria ser “futuro” transforma-se em cenário. Há piscinas sem risos, varandas sem conversas, luzes acesas para ninguém. Um luxo sem corpo dentro. Um palco sem atores.
E Cuba, neste momento, é muito isto: um palco onde os actores se foram embora.
Não porque deixaram de existir turistas. Há turistas, sempre houve, haverá. O turismo, aliás, é uma das últimas torneiras que ainda pinga moeda. O que mudou é outra coisa: a população.
A fuga não é um fenómeno lateral; é o centro da história. A ilha não está apenas pobre. Está a perder gente. E quando um país perde gente — jovens, profissionais, famílias inteiras — perde também o músculo que poderia endireitá-lo.
Há quem atravesse o mar em embarcações improvisadas, com a coragem de quem já não tem nada para perder. Há quem morra. Há quem desapareça sem sequer deixar uma notícia decente. E há quem faça o caminho “legal” e, por isso mesmo, mais caro: vender a casa, pedir dinheiro emprestado, pagar a intermediários, comprar um bilhete para um país que serve de passagem, e depois subir, devagar, por estradas e redes de contrabando.
Uma peregrinação ao contrário, em que o “prometido” não é uma terra santa, é um posto de fronteira.
Eu não gosto de escrever isto. Aliás, quem gosta de escrever sobre uma fuga nunca fugiu. A fuga é uma forma de amputação. Parte-se um pedaço de si e espera-se que o resto sobreviva.
Conheci, uma vez, um homem que saiu de Cuba com a mulher grávida e um filho pequeno. Chamemos-lhe Aldo, porque às vezes é preciso um nome simples para dizer uma vida complicada.
Falou-me como se estivesse a pedir desculpa por existir. E a certa altura disse uma frase que me ficou: “Havia uma febre. Toda a gente estava a ir.”
A febre é uma imagem certeira. Não é entusiasmo, não é aventura. É corpo em alarme. É instinto. É a ideia de que ficar é adoecer.
O que me impressiona nestas histórias não é a travessia. É o momento em que chegam ao outro lado e descobrem que o outro lado também está doente, só que de outra maneira.
Durante décadas, o imaginário cubano construiu os Estados Unidos como um lugar de justiça, um lugar de regras claras, um lugar onde a palavra “direitos” tinha espinha.
Para quem viveu com medo de dizer uma frase no sítio errado, a ideia de um Estado de Direito funciona como um oásis.
O problema é que, quando chegam, encontram um país onde o discurso político aprendeu a usar o medo como ferramenta de gestão. E isso — para um cubano — tem uma ressonância muito particular. É como sair de uma casa a arder e entrar numa casa onde o fumo ainda não se vê, mas já se sente.
Em Miami, então, a história ganha uma ironia que às vezes dói.
Há uma “Pequena Havana” com cafés e lojas e memórias. Há parques onde homens jogam dominó com a seriedade de quem está a proteger uma pátria imaginária. Há ruas e avenidas com nomes de figuras cubanas, algumas heroicas, outras controversas, todas usadas para construir um altar de identidade. Miami é, para muitos, a extensão emocional da ilha.
Uma ilha com ar condicionado.
E, no entanto, há uma parte importante dessa comunidade que se agarrou — com entusiasmo — a uma política americana que promete dureza contra imigrantes. Isto parece absurdo, mas é mais humano do que parece.
O exilado, muitas vezes, precisa de um salvador. Precisa de acreditar que alguém, finalmente, fará o que ele sonhou: derrubar o regime de Havana, humilhar os homens do poder, reescrever a história.
Se esse alguém fala em “mudança de regime” com voz grossa e frases simples, melhor. O problema é o preço. E o preço, quase sempre, é pago pelos que chegam depois.
Há, dentro das comunidades migrantes, uma crueldade que raramente se diz em voz alta: a tentação de fechar a porta depois de entrar. “Eu mereci.” “Eu sofri.” “Eu vim como deve ser.” E, portanto, “estes de agora” são menos dignos, mais suspeitos, mais incómodos. Isto repete-se em todo o lado, em todas as diásporas. E repete-se com uma eficácia triste.
Enquanto isso, a máquina do Estado americano — que, em muitos momentos, é uma máquina cega — trata as pessoas como números. Há centros de detenção. Há audiências adiadas por anos. Há filas dentro de filas. Há advogados que pedem provas impossíveis, como se a perseguição, para ser real, precisasse de carimbo. E há uma realidade nova, muito concreta: agentes à porta dos tribunais, pessoas presas no momento em que vão “cumprir a lei”, famílias a viverem com o pânico de uma carta, de uma notificação, de um erro.
Um país que aprendeu a celebrar a liberdade, de repente, começa a parecer-se com aquilo de que muitos fugiram.
E isto é o ponto que me interessa: a simetria sombria.
Cuba, durante anos, foi o exemplo clássico de um sistema que pede obediência e chama-lhe “povo”.
Os Estados Unidos, hoje, têm sectores políticos que pedem obediência e chamam-lhe “segurança”.
Mudam as palavras.
O mecanismo tem semelhanças.
E depois há aquilo que me parece mais grave: o gosto pelo espetáculo.
Há um tipo de política que não governa — encena. Precisa de imagens. Precisa de fotografias em frente a grades. Precisa de mapas com setas, de slogans, de nomes inventados para lugares inventados. Precisa de um “Alcatraz” numa zona de pântano, por exemplo, porque a crueldade, quando é filmável, dá votos. O pântano, os insetos, o calor, o improviso: tudo serve, desde que comunique a mesma mensagem. “Não venham.” E, sobretudo, “nós mandamos.”
Quando a política chega a esse ponto, não está a gerir fronteiras. Está a gerir sentimentos. E o sentimento escolhido é sempre o mesmo: medo.
O que acontece, então, a um cubano que fugiu do medo? Acontece que volta a viver com medo — só que agora o medo tem outra bandeira. E o pior medo é sempre este: o medo que nos faz agradecer por migalhas.
“Ao menos não me bateram.” “Ao menos não me insultaram.” “Ao menos ainda não fui chamado.” A dignidade, lentamente, vai sendo trocada por alívio.
Se eu falar da ilha outra vez, é para dizer uma coisa simples: um país não colapsa apenas por causa de um embargo ou de uma sanção. Isso é uma parte da história, sim. Mas há uma parte que costuma ser ignorada pelos fiéis: o estrago interno.
A economia que não alimenta. A burocracia que castiga. A desconfiança como método. O medo como cultura.
A insistência em prometer o mesmo quando a vida mostra o contrário.
Há uma palavra cubana que eu gosto — resolver. Não no sentido bonito de “resolver um problema” com calma. No sentido de sobrevivência. Resolver comida. Resolver luz.
Resolver um remédio. Resolver gasolina. Resolver um lugar na fila.
É um verbo que, dito assim, parece prático e até admirável. Mas há uma humilhação escondida nele: quando a vida se torna apenas resolução de urgências, deixa de haver projeto. Deixa de haver horizonte. E sem horizonte, a juventude vai-se embora. Não por ideologia. Por instinto.
A fuga de Cuba, por isso, não é um episódio. É uma resposta coletiva ao esgotamento.
E depois há as figuras que ficam. As mães velhas. Os avós. Os que já não podem atravessar selvas e rios. Os que não podem vender uma casa porque a casa já vale quase nada. Os que dependem de remessas de filhos que agora vivem em quartos pequenos, em bairros periféricos, a trabalhar em coisas que nunca imaginaram. Esses, os que ficam, são o retrato mais cruel de um país em perda: um país de velhos e de ausências.
Há quem diga: “Que colapse.”
Há quem acredite que apertar o cerco, cortar remessas, tornar a vida impossível, vai produzir uma revolta e, depois, uma democracia. Isto é uma fantasia perigosa.
A história mostra-nos que regimes autoritários, quando caem, nem sempre dão lugar a democracias. Muitas vezes dão lugar a mafias, a milícias, a caos.
Um país com fome não se torna automaticamente virtuoso. Um povo exausto não é, por definição, um povo livre.
E, mesmo que a queda viesse, há uma pergunta que ninguém parece querer enfrentar com honestidade: quem paga o “tratamento”? Quem sofre o “remédio”?
Os que mandam raramente passam fome. Os que mandam têm sempre portas. Os que mandam têm sempre torres.
O que me leva, de novo, à imagem inicial.
Uma torre de vidro e aço, erguida como se fosse progresso, num país onde o progresso foi substituído pela saída.
O poder gosta de construir símbolos porque os símbolos parecem eternos. Mas há uma coisa que nenhum símbolo consegue conter: a vontade de partir.
E aqui há uma lição que não é apenas cubana.
É universal.
Um Estado pode controlar jornais, polícias, tribunais, fronteiras. Pode controlar hotéis. Pode controlar importações. Pode controlar a narrativa.
O que não consegue controlar, por muito tempo, é a sensação íntima de que a vida não tem amanhã.
Quando essa sensação se instala, o país começa a esvaziar. E nenhum vidro, nenhum aço, nenhum cartaz consegue impedir isso.
Também não nos iludamos do lado de lá.
Os Estados Unidos, quando usam a detenção como teatro, quando transformam pessoas em “casos”, quando falam de imigração como se fosse praga, estão a fabricar uma doença própria. Uma doença moral. E essa doença, como todas, não fica confinada ao alvo. Espalha-se. Normaliza-se.
Um dia, atinge outros. E quando se dá por ela, já não é só o imigrante que tem medo. É a sociedade inteira que vive de sobressalto.
É por isso que a história de Cuba, hoje, me parece tão relevante: porque é uma história de fuga, sim, mas também é uma história de espelhos. O exilado que troca um regime por outro tipo de dureza.
A cidade que perde gente enquanto ergue edifícios para estrangeiros. A comunidade que, tendo sido salva por políticas de acolhimento no passado, apoia políticas de expulsão no presente. O país que se constrói contra um inimigo e acaba a precisar desse inimigo para existir.
E, no meio disto, há pessoas concretas: um homem com um filho pela mão, uma mala, um medo antigo e um medo novo.
Há mulheres que esperam cartas. Há idosos que esperam remessas. Há jovens que esperam um visto. Há quem espere o fim do regime.
Há quem espere o fim de uma audiência em tribunal. E há, sobretudo, este cansaço, que é a matéria de todas as fugas: a certeza de que ficar é morrer devagar.
Eu gostava de terminar com uma frase redonda, mas não tenho. Há histórias que não deixam espaço para grandeza literária. Deixam, quando muito, um apelo simples: que não nos habituemos.
Que não nos habituemos a países vazios, a torres vazias, a cidades sem juventude. Que não nos habituemos a prisões feitas para fotografia. Que não nos habituemos a discursos que tratam pessoas como lixo. Porque aquilo que começa por ser “excepção” acaba por ser norma. E a norma, quando se instala, já não pede autorização.
Cuba foge, e o mundo observa.
Mas talvez o mais inquietante seja isto: enquanto olhamos para a ilha a esvaziar-se, há outras ilhas a formar-se dentro dos países que se dizem livres.
Ilhas de medo. Ilhas de silêncio. Ilhas onde a lei não serve para proteger, serve para mostrar força.
E isso — isso sim — é o princípio de um colapso.
AC




O próprio mundo se tornou em várias Cuba!! Uns mais outros menos, mas todos a seguir o mesmo rumo! Sinto-me, como muitos, a caminhar para um país, em certos aspetos, como Cuba! O mundo, hoje, caminha para uma gigante CUBA, onde o medo, a dor, a fome e sofrimento cada vez se torna real. Belíssimo texto. Obrigada AC, pelos seus textos e sobre assuntos tão pertinentes. Um Santo Natal.
Se me fosse possivel dar um titulo chamar-lhe -ia A fuga do medo e o abraço do ódio.
Na realidade a fuga aumentou em todo o mundo onde a miséria se instalou como um dado adquirido dos que, sendo donos do mundo, se consideraram donos de todos nós. E os homens pensaram que, do outro lado, não era preciso fugir e havia sempre trabalho e pão. Mas esqueceram-se que os poderosos estavam lá também, à espera de escravizarem quem, à procura duma Riviera Maia, tivesse de se sujeitar ao medo, à fome e à injustiça.
Mais ainda: do outro lado encontraram o ódio, a fome e a solidão.
Cada um devia ter direito à terra onde nasceu e devia crescer…
Que privilégio é mergulhar numa escrita tão humana e adorável! É verdadeiramente fabuloso poder aceder a uma revista com este nível de qualidade literária de forma gratuita. O trabalho do Alberto Carvalho é um presente para quem ama as letras. Parabéns por manterem a chama da cultura viva e acessível!
Tantas verdades, neste texto. Também não tenho frases mágicas para comentar. E fico triste com o que vejo à minha volta, na minha cidade, no meu país. No entanto, ainda tenho esperança que possamos receber e ser recebidos onde escolhermos viver. E que possa ser escolha.
Não saia deste espaço: faz-nos falta.