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Alberto Carvalho — Narrador para quem ainda escuta as palavras

O espaço de Alberto Carvalho, crónicas, contos e reflexões para quem lê devagar

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Sobre o fim das amizades e a coragem de ver

Ninguém nos ensina a terminar amizades. Aprendemos a construí-las, a mantê-las, a salvá-las quando vacilam. Mas sobre o momento preciso em que é necessário reconhecer que algo morreu — sobre isso, reinam o silêncio e a culpa.


Quando a lealdade se transforma em mentira, e partir é o único ato honesto.


Por Aurelian Draven


Há uma forma particular de cansaço que não vem do trabalho nem do corpo. Vem de fingir que uma conversa ainda existe quando já só há monólogo.


Vem de anos a sustentar sozinho o peso de uma relação que a outra pessoa abandonou sem sequer o dizer. Esse cansaço não tem nome na nossa língua, mas todos os que o sentiram reconhecem-no instantaneamente: é o cansaço de quem carrega um morto e finge que ainda respira.


A amizade verdadeira é pacto silencioso entre duas pessoas que concordaram em aparecer. Não sempre, não sem falhas, mas com consistência suficiente para que o outro saiba: posso contar contigo quando o mundo se fechar.


Quando esse pacto se quebra apenas de um lado, quando uma das partes continua a aparecer e a outra simplesmente desapareceu sem nunca admitir que partiu, resta uma violência subtil que não tem testemunhas nem tribunal.


A tentação da mártir


Existe uma tentação sedutora em continuar.


Convencemo-nos de que a nossa persistência é virtude, que a nossa capacidade de aguentar é prova de carácter. Contamos a nós próprios uma história bonita: eu sou a pessoa que não abandona, que fica quando fica difícil, que compreende que o outro está em crise e por isso perdoo tudo.


Esta narrativa é confortável porque nos coloca no papel de herói. Mas frequentemente é apenas cobardia disfarçada de nobreza. Porque continuar a fingir que uma amizade existe quando já não existe não é ato de amor — é mentira partilhada entre nós e o fantasma que insistimos em alimentar.


Há uma diferença brutal entre apoiar alguém numa fase difícil e tornar-se o contentor emocional permanente de uma pessoa que nunca pergunta como estamos.


A primeira situação é temporária e recíproca no essencial: eu apareço agora porque sei que tu aparecerás quando for eu a precisar. A segunda é extração. E nenhuma amizade sobrevive a anos de extração sem reconhecimento.


O que resta quando a raiva se cala


Curiosamente, muitas pessoas só percebem o tamanho do desgaste quando a relação pára.


Há quem descreva o primeiro mês sem a outra pessoa como revelação: de repente, há paz. De repente, já não há aquela sensação constante de estar em dívida, de não fazer o suficiente, de ser má pessoa por não conseguir fazer mais.


O silêncio que vem depois de anos de ruído emocional é ensurdecedor. E nesse silêncio, torna-se finalmente possível ver o que estava ali o tempo todo: que a amizade tinha acabado há anos, e nós limitámo-nos a recusar ver.


Que a outra pessoa já não investia, já não perguntava, já não aparecia — mas nós convencemo-nos de que era a crise, a depressão, as circunstâncias. E talvez fosse. Mas isso não muda o resultado: uma amizade não pode sobreviver só com o esforço de uma das partes.


A armadilha da saúde mental


Vivemos num tempo em que a linguagem da saúde mental se tornou moeda corrente. Isso trouxe ganhos enormes: redução de estigma, maior capacidade de pedir ajuda, reconhecimento de que o sofrimento psicológico é real e merece cuidado. Mas trouxe também uma distorção perigosa: a ideia de que ter uma perturbação mental justifica qualquer comportamento, e que apontar esse comportamento é crueldade.


Não é. Uma pessoa pode estar genuinamente em sofrimento e, ao mesmo tempo, estar a tratar-nos mal. Estas duas coisas coexistem sem contradição. E a nossa compaixão pelo sofrimento da outra pessoa não nos obriga a aceitar indefinidamente o maltrato.


Compaixão não é capitulação.


Há pessoas que utilizam a sua condição mental como escudo permanente contra qualquer responsabilidade relacional. Explodem, magoam, desaparecem, exigem — e depois invocam a ansiedade, a depressão, o trauma para bloquear qualquer conversa sobre o impacto do seu comportamento. Este padrão não é doença mental; é manipulação que se serve da doença mental como ferramenta.


E aqui reside o ponto mais difícil: podemos reconhecer que alguém está genuinamente em sofrimento e, simultaneamente, reconhecer que não somos obrigados a permanecer como alvo desse sofrimento. A saúde mental da outra pessoa não pode tornar-se a nossa prisão.


Sobre culpa e clareza


Quando finalmente escolhemos partir, a culpa vem. Talvez devesse ter aguentado mais. Talvez seja egoísmo. Talvez esteja a abandonar alguém que realmente precisa de mim. Estas perguntas são legítimas, mas frequentemente mal colocadas.


A pergunta correta não é "será que sou má pessoa por partir?".


A pergunta é: "esta relação ainda existe, ou estou apenas a recusar ver que já terminou?".


Porque se a outra pessoa já partiu em tudo exceto no nome, se já não há reciprocidade, se já não há esforço do outro lado, então não estamos a terminar nada. Estamos apenas a reconhecer o que já aconteceu.


Há uma crueldade específica em manter relações mortas. Crueldade para connosco, obviamente, que desperdiçamos anos em vínculos que nos drenam sem devolver nada. Mas também crueldade para com a outra pessoa, porque lhe permitimos acreditar que o seu comportamento é aceitável, que pode continuar indefinidamente a usar-nos como depósito emocional sem consequências.


Partir pode ser o ato mais honesto possível. Não por raiva, não por vingança, mas por simples reconhecimento da realidade: isto terminou, e continuar a fingir que não terminou não serve ninguém.


Os que ficam


Haverá sempre quem critique. Quem diga que verdadeiros amigos não desistem, que na doença e na saúde, que devíamos ter aguentado mais. Essas vozes vêm frequentemente de pessoas que nunca estiveram na posição de carregar sozinhas o peso de uma relação durante anos. Ou vêm de pessoas que estão nessa posição mas ainda não admitiram a si próprias que já podem parar.


Ignore essas vozes. Elas não conhecem o seu cansaço. Não viveram os seus anos de aparecer sem reciprocidade, de dar sem receber, de perdoar sem que houvesse sequer pedido de desculpa. Elas não têm informação suficiente para julgar, e mais importante: não têm direito.


A única pessoa que precisa de estar em paz com a sua decisão é você. E essa paz não vem de aprovação externa. Vem de saber, no fundo, que fez o que podia enquanto havia algo para salvar, e que reconheceu o momento em que já não havia.


Epílogo prático


Terminar uma amizade não requer grande cena nem explicações intermináveis. Aliás, quanto mais explicamos, mais nos prendemos em discussões circulares onde a outra pessoa tentará convencer-nos de que estamos errados. E talvez estejamos. Mas se duvidamos há anos, se o cansaço é real, se a paz que sentimos na ausência é maior que qualquer paz que sentíamos na presença, então provavelmente não estamos errados.


Podem bastar três coisas: reconhecer honestamente para si próprio que a relação terminou, comunicar isso de forma breve e clara se achar necessário, e depois simplesmente não estar disponível. Não bloquear em fúria, não elaborar listas de queixas, não tentar provar nada. Apenas reconhecer que este capítulo fechou, e agir em conformidade.


Haverá tristeza. Haverá dias em que duvida. Haverá momentos em que se pergunta se não deveria ter tentado mais uma vez. Esses momentos são normais e não significam que errou. Significam apenas que está a processar uma perda real — porque mesmo quando uma amizade já estava morta, o seu fim oficial é luto legítimo.


Mas do outro lado desse luto, se for honesto consigo próprio, provavelmente encontrará algo inesperado: espaço. Espaço emocional, espaço mental, espaço para relações que efetivamente funcionam.


E nesse espaço, poderá finalmente perceber o tamanho do peso que carregava, e sentir alívio por finalmente ter tido coragem de o pousar.



Duas figuras humanas de mãos entrelaçadas representando conexão humana e amor ao próximo apesar da distância
Sobre o próximo que nunca conhecemos

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