O que não é crime
- Alberto Carvalho - Narrador

- 27 de jul.
- 2 min de leitura
O que não é crime
Em Portugal, há quem diga que temos tudo.
Leis, abrigos, linhas de apoio, psicólogos.
E é verdade.
Temos.
Mas também temos outra coisa: silêncio.
Arquivo.
Suspensão.
Arquivamento.
Mais de vinte mil casos por ano de violência doméstica terminam sem resposta.
Mais de 20 000!
E mesmo os que não terminam, às vezes acabam em nada.
Porque insultar todos os dias ainda não é crime.
Porque controlar o telemóvel ainda não é crime.
Porque impedir uma mulher de trabalhar não é crime.
Porque obrigá-la a isolar-se não é crime.
Porque ameaçar os filhos, desde que não se toque neles, não é crime.
Porque fazer da casa uma prisão não é crime — se a fechadura ainda abrir por fora.
A verdade é esta: a maioria dos casos não chega a tribunal.
E os que chegam, quase sempre saem com pena suspensa.
Mesmo quando há marcas.
Mesmo quando há medo.
Mesmo quando ela está viva — por pouco.
E mesmo quando há sangue.
Mesmo quando há hospital.
Mesmo quando os vizinhos ouviram.
Mesmo quando ela desce as escadas com o corpo vergado.
Mesmo aí, o sistema pode escrever: crime simples.
Chamam “simples” ao que arrasa uma vida.
Como quem diz: não chegou a matar.
Como quem diz: podia ser pior.
Como quem diz: o arguido mostrou arrependimento.
Como quem diz: vamos ver se isto não se repete.
Mas repete.
E repete.
E repete.
E depois choramos por mais uma mulher assassinada — como se fosse surpresa.
Como se não soubéssemos.
Como se não tivéssemos tido tempo.
Portugal não precisa de prisão perpétua.
Portugal precisa de justiça.
De um sistema que atue antes da queda.
De tribunais que ouçam antes da faca.
De penas que protejam.
De sentenças que eduquem e afastem — e não que devolvam o agressor à porta da vítima e esperança no bolso.
É preciso agir. E agir cedo.
A neutralidade perante a violência não é imparcialidade — é cumplicidade.
Porque não é só o agressor que destrói.
É o Estado que permite.
É o juiz que adia.
É o arquivador que arquiva.
É o país que cala.
E um país que cala perante isto, não é um país em paz.
AC




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