O Preço do Perdão – Parte II: A Justiça que se Desvia
- Alberto Carvalho - Narrador
- há 6 dias
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Reflexões íntimas e crónicas de um país por dentro — fragmentos de uma pátria que se reconhece no que não diz, no que esconde, no que já não sabe nomear. Um país sem nome, mas com memória.
Há momentos na vida pública em que o país parece entrar num corredor estreito. Passamos uma porta, depois outra, e, sem darmos conta, já não estamos onde pensávamos estar.
A paisagem muda devagar, quase sem ruído, e é essa lentidão que torna a mudança mais perigosa: ninguém percebe o exato instante em que a justiça deixou de ser um sistema e passou a ser uma interpretação; quando deixou de ser voz e passou a ser eco.
Quando a exceção se transforma em hábito e a justiça perde o seu centro moral.
Se a primeira parte deste ensaio procurou compreender a tentação do perdão — essa prerrogativa absoluta que habita a caneta de um Presidente — esta segunda parte tenta algo mais difícil: olhar para o modo como um país se adapta quando as exceções começam a parecer regra.
Quando a clemência se transforma, pouco a pouco, numa linguagem paralela, entendida apenas por alguns. É aí que começa a justiça que se desvia.
I — O país que aprende a tolerar
Há um fenómeno curioso nas sociedades democráticas: habituam-se. A tudo.Habituam-se ao excesso, ao escândalo, ao desvio, às incoerências, às notícias que passam num rodapé como quem passa a ferro páginas de um livro. Habituam-se ao que devia ser intolerável. E, quando a habituação se instala, instala-se também uma espécie de anestesia moral.
O desvio deixa de ser exceção e começa a ser paisagem. E a paisagem, quando vista todos os dias, torna-se invisível.
Um país começa a adormecer quando já não estranha nada. E começa a perder-se quando deixa de distinguir entre o razoável e o abusivo.
O perdão presidencial — esse gesto tão poderoso, tão cheio de história e ambiguidade — pode tornar-se o principal sintoma dessa erosão.
Quando é usado com parcimónia, ilumina o que resta de humanidade numa máquina fria. Mas quando se torna rotina, deixa de iluminar e começa a cegar.
II — O mapa invisível das proximidades
A justiça paralela não nasce do dia para a noite. Nasce da acumulação de pequenas decisões que parecem inofensivas. Todas elas justificáveis, todas elas defendidas em nome da exceção. Todas elas embaladas num discurso que apela à misericórdia, à correção dos excessos, ao equilíbrio entre lei e compreensão humana.
Mas, por baixo do discurso oficial, existe um território silencioso — uma geografia feita de proximidades, favores, compromissos implícitos. Uma espécie de mapa subterrâneo onde a justiça não depende apenas dos factos, mas também das relações.
O que me assusta não é o perdão em si — é o modo como ele pode ser solicitado. E, mais ainda, o modo como começa a circular a ideia de que o perdão é possível para uns e impossível para outros.
Uma sociedade que internaliza essa distinção entra numa espécie de adolescência moral: sabe que está errada, mas não encontra força para se corrigir.
O que parece justo deixa de ser o que está certo — e passa a ser o que está disponível.
III — Quando a justiça deixa de ser cega
Fala-se muito na imagem clássica da justiça: a mulher de olhos vendados, segurando uma balança e uma espada.
Sempre achei comovente essa tentativa de representar a imparcialidade. A venda é o símbolo que mais me intriga.
A justiça não precisa de ser muda — precisa é de ser cega.
Mas quando os perdões se distribuem segundo critérios que ninguém conhece, a venda começa a escorregar. Primeiro um pouco. Depois mais. Até que a justiça, já com um olho descoberto, começa a avaliar não apenas o peso dos atos, mas o peso dos nomes.
E a partir desse momento, a justiça deixa de ser cega — e passa a ser míope.Vê de perto, mas não vê de longe. Avalia a árvore, mas já não distingue a floresta.
E uma República com uma justiça míope não está apenas em risco: está inclinada.
Os sistemas não se corrompem com grandes explosões; corrompem-se com pequenos alinhamentos desviados, que repetidos muitas vezes criam um ângulo novo no edifício.
O perdão, usado como instrumento de gestão política, altera esse ângulo.
IV — A construção silenciosa de um segundo país
Há sempre dois países dentro do mesmo país. Um deles é o país visível: o dos tribunais, das eleições, das leis, dos discursos. O outro é o país subterrâneo: o das relações pessoais, dos compromissos implícitos, da influência, dos corredores curtos.
Quando o perdão presidencial começa a circular com demasiada flexibilidade, nasce uma ponte que liga os dois países — e não é uma ponte construída pelo povo, pelos tribunais ou pela Constituição. É uma ponte construída pelo poder.
E, pela primeira vez, deixa de ser o mérito que conduz alguém ao perdão e passa a ser a proximidade. Deixa de ser a argumentação jurídica e passa a ser a argumentação política. Deixa de ser a justiça e passa a ser a utilidade.
S
e isto não assusta um país, é porque o país já começou a adormecer.
V — A normalização do desvio
O que mais me impressiona não é o escândalo. O que me impressiona é a ausência dele.
Quando uma sociedade já não reage, não questiona, não debate, não exige explicações — não é porque está madura, é porque está cansada. E um país cansado é sempre fértil para a normalização dos abusos.
Os perdões compulsivos, os perdões estratégicos, os perdões que parecem ter uma agenda, os perdões que não explicam o que pretendem — tudo isso começa a parecer “parte do jogo”.E o mais assustador é isto: quando o desvio se normaliza, deixa de ser desvio.
Os Estados Unidos vivem com um segundo sistema de justiça: um para o cidadão comum, outro para o círculo próximo do poder.
E quando há dois sistemas, não há sistema nenhum.
VI — A tentação de absolver o útil
Há uma força quase gravitacional na política: o impulso de proteger os seus. É uma força antiga, quase tribal. Uma mistura de lealdade e medo. Mas quando essa força se cruza com o poder absoluto de perdoar, nasce um risco que poucas sociedades estão preparadas para enfrentar.
A tentação não é apenas cobrir os erros dos aliados — é querer construir para eles uma inocência artificial. Uma inocência não baseada nos factos, mas na conveniência. Uma inocência que não é conquistada, mas concedida.
E quando o perdão deixa de ser um gesto de grandeza e passa a ser um instrumento de limpeza simbólica, a democracia perde uma das suas colunas.
Porque, no fim de contas, a justiça não é apenas um conjunto de procedimentos: é uma narrativa comum. A justiça precisa de ser acreditada para existir.
E nada destrói essa crença mais rapidamente do que a ideia de que algumas pessoas são absolvidas não por serem justas, mas por serem úteis.
VII — A demolição suave da confiança
Não há democracia que sobreviva sem confiança. E não há confiança que sobreviva a um sistema onde a exceção se transforma em hábito.
O perdão presidencial americano — esse gesto tão solene e tão frágil — pode funcionar como um marcador moral. Quando é bem utilizado, aumenta a confiança. Quando é abusado, destrói-a.
E, ao contrário do que muitos pensam, a confiança não cai com estrondo. Cai em silêncio. Cai nos pequenos gestos, nas ironias dos cafés, nos comentários cansados das famílias, nas conversas murmuradas que terminam sempre com a mesma frase: “Isto já não é para nós.”
Quando um país chega a esse ponto, já não é apenas a justiça que se desviou — somos nós que começámos a desviar o olhar.
VIII — A pergunta final
Escrevo estas linhas consciente da sua dureza. Mas não acredito que haja outra forma de olhar para um fenómeno tão delicado. A clemência presidencial não é, por natureza, um mal. Pelo contrário. É uma das poucas janelas pela qual a humanidade consegue entrar num sistema que, tantas vezes, se torna mecânico e insensível.
Mas essa mesma janela pode transformar-se numa porta larga para os desvios éticos que, acumulados, abalam a arquitetura moral de um país.
E assim regresso à pergunta que abriu esta segunda parte: o que acontece a uma República quando a justiça começa a desviar-se?
Acontece o que sempre aconteceu, em todos os tempos e em todos os continentes: o país começa a dividir-se entre os que acreditam e os que desistiram; entre os que confiam e os que já só esperam; entre os que ainda lutam e os que preferem não ver.
E, no meio desse ruído, nasce a pior consequência de todas: não a injustiça — mas a indiferença.
Porque a injustiça pode ser corrigida. A indiferença, não.
Autor: AC
Imagem: - Foto: Tingey Injury Law Firm / Unsplash
Leia também a primeira parte: O Preço do Perdão — Parte I: O Poder que Absolvia
