O Preço do Perdão — Parte I
- Alberto Carvalho - Narrador
- há 6 dias
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Atualizado: há 6 dias
Reflexões íntimas e crónicas de um país por dentro — fragmentos de uma pátria que se reconhece no que não diz, no que esconde, no que já não sabe nomear. Um país sem nome, mas com memória.
Há poderes que nascem com a intenção de salvar e acabam, lentamente, por aprender a corromper. Nenhum me inquieta tanto como o poder que permite a um só indivíduo — um presidente, um chefe de Estado, um vértice solitário da pirâmide — rasgar sentenças que foram escritas ao longo de meses ou anos, entre provas, testemunhos, hesitações, recursos, angústias e cicatrizes.
O poder que absolve e o risco de transformar a clemência num instrumento de influência.
Esse gesto, que chamamos “perdão”, é uma das mais antigas invenções humanas: uma luz que atravessa a dureza da lei. Mas também é, se não for vigiado, uma sombra que atravessa a transparência da República.
Nunca consegui olhar para o perdão presidencial sem um sobressalto íntimo. Há nele algo de sublime e algo de perigoso. Sublime porque reconhece que a justiça, por mais rigorosa que seja, pode errar; perigoso porque recorda, com a brutalidade dos factos, que o poder absoluto nunca desapareceu — apenas mudou de roupagem, tornou-se mais limpo, mais polido, mais constitucional. Mas continua ali, à distância de uma assinatura.
Quando observo esse gesto — a caneta que se inclina, a tinta que cai, a sentença que se dissolve — pergunto sempre: quem vigia o vigilante? Quem decide que este perdão é um sinal de humanidade e aquele outro um ato de conveniência? Quem distingue a misericórdia do cálculo político? Quem separa a compaixão do reflexo instintivo de proteger os seus?
É aqui que começa a minha inquietação.
I — O Perdão como Ritual de Poder
Todos os povos inventaram, à sua maneira, um mecanismo para libertar alguém do peso da culpa. É um traço profundamente humano: não conseguimos viver numa sociedade onde tudo é punido, onde tudo é definitivo. Precisamos de acreditar que existe uma porta, pequena que seja, para aqueles que erraram e merecem recomeçar.
Mas, em quase todas as civilizações, essa porta não é larga — é estreita e depende de um guardião.
O perdão presidencial, tal como existe nas democracias modernas, é herdeiro direto dessa lógica: um poder extraordinário reservado a uma pessoa ordinária, com virtudes, limites, inclinações e fragilidades como qualquer um de nós.
E aqui surge o paradoxo: confiamos num cidadão comum um poder extraordinário porque acreditamos que ele será capaz de agir com uma virtude extraordinária. Mas a História, essa velha professora que nunca perdoa ilusões, mostra-nos que raramente é assim.
O perdão presidencial é uma espécie de altar laico: aproxima-se com solenidade, ajoelha-se perante o espírito da justiça, coloca-se a mão sobre a pedra fria da Constituição e decide-se se a clemência é um gesto de grandeza… ou uma arma de bastidores.
II — A Economia da Clemência
Há uma frase que todos conhecemos, ainda que raramente admitamos: a lei é para todos, mas a exceção não é. E é aqui que começa a economia moral do perdão.
A clemência oficial nunca existe no vazio. Existe num ecossistema de relações humanas: amizades políticas, alianças silenciosas, redes de influência, telefonemas discretos, conselheiros que sussurram, advogados que insinuam, emissários que preparam o terreno.
A própria ideia de “pedido de perdão” já contém em si uma desigualdade. Quem não tem voz, pede como pode; quem tem poder, pede como quer.
E a linha que separa o justo do conveniente começa a desfocar-se. Primeiro quase sem se notar. Depois com a naturalidade de quem bebe água.
Um país que começa a ver o perdão como um privilégio negociável — explícita ou implicitamente — aproxima-se perigosamente de uma aristocracia moral. Uma sociedade que aceita que algumas pessoas podem comprar, merecer ou influenciar a própria anulação dos seus erros começa a habituar-se a um novo normal: uma justiça com duas portas, uma largura e outra estreita.
Tudo isto me lembra, inevitavelmente, um velho princípio: o que é concedido em nome da graça pode ser reclamado em nome do interesse. E aquilo que deveria ser exceção transforma-se em moeda.
III — A Fragilidade das Instituições
Quando um Presidente perdoa alguém que nunca deveria ter sido condenado, o país respira de alívio. A clemência aparece como o último reduto da justiça, o ponto de fuga numa arquitetura rígida.
Mas quando um Presidente perdoa alguém que deveria responder pelos seus atos, a República perde um pedaço da sua espinha dorsal. Não é apenas a lei que fica abalada; é a perceção de que todos somos medidos pela mesma balança.
E, numa democracia, a perceção é tão importante quanto o facto.
Não precisamos que um abuso seja frequente para que seja corrosivo. Basta que seja plausível. Basta que uma parte da sociedade comece a suspeitar que a justiça pode ser dobrada como um galho seco. É assim que nasce o descrédito. E o descrédito é um vírus rápido, invisível e resistente.
IV — O Perdão como Espetáculo
Há outra dimensão que me inquieta: o perdão como performance pública. O perdão como parte de uma coreografia política. O perdão como gesto calculado para produzir efeito, gerar manchetes, fidelizar seguidores, recompensar alianças, sinalizar poder.
Quando a clemência se transforma em espetáculo, perde o seu núcleo moral. Deixa de ser uma síntese entre justiça e humanidade para se tornar numa ferramenta de narrativa. O gesto deixa de corrigir a vida e passa a corrigir a agenda.
E, quando o perdão é usado como prova de força — “eu posso”, “eu decido”, “eu determino quem se levanta” — não é a bondade que se afirma, é a hierarquia.
O perdão deixa de ser bálsamo e converte-se em troféu. Ou pior: em arma.
V — A República e o Abismo Ético
A democracia não colapsa porque as leis desaparecem — colapsa quando as leis permanecem, mas deixam de significar o mesmo. O código pode manter-se intacto, a Constituição pode continuar suspensa nas paredes dos tribunais, mas, quando a prática se desvia, a letra perde peso.
O perdão presidencial é um dos pontos onde essa distorção pode tornar-se mais visível.
Sempre que é utilizado para proteger influências, corrigir alianças ou premiar lealdades, cria um desvio. E esse desvio abre outro, e outro, e outro. Até que o país acorda um dia e percebe que já não mede a justiça pelo que ela é, mas pelo que ela concede.
Durante anos, habituaram-nos à ideia de que “todos os poderes têm excessos”.Mas não é verdade.
Há excessos que não são defeitos tecnológicos — são falhas morais. E o perdão, por ser absoluto e irreversível, amplifica essas falhas com uma força que nenhum outro ato institucional possui.
VI — A Pergunta que Fica
Escrevo estas linhas sem conhecer todos os bastidores onde a clemência circula, mas conheço, como qualquer cidadão atento, a fragilidade humana que habita os corredores do poder. Conheço o efeito que a proximidade exerce. Conheço a tentação de proteger os amigos — e, pior, de proteger os fiéis.
E por isso deixo a pergunta que me parece mais urgente, e que servirá de ponte para a
Quando o perdão é absoluto, quem perdoa o abuso do perdão? Quem vigia o vigia? Quem exerce clemência sobre os que concederam clemência demais? Quem devolve à República aquilo que se perdeu no segredo das decisões irreversíveis?
Talvez a resposta esteja na sociedade civil, talvez na imprensa, talvez na consciência histórica, talvez no medo — o medo saudável — de ser lembrado como alguém que confundiu o interesse público com a administração privada da justiça.
Mas, como descobriremos na segunda parte, há algo ainda mais inquietante: o perdão não é apenas um ato isolado. É um sintoma. Um sintoma de um país, seja ele qual for que pode estar a perder a capacidade de distinguir entre autoridade e arbítrio.
E isso, sim, merece uma reflexão mais longa.
Autor: AC
Imagem: - Tingey Injury Law Firm / Unsplash
Atravessai comigo para a Parte II: A Justiça que se Desvia
