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Alberto Carvalho — Narrador para quem ainda escuta as palavras

O espaço de Alberto Carvalho, crónicas, contos e reflexões para quem lê devagar

O ferro e o fumo abriram caminho a um novo tempo em Portugal.

Atualizado: 10 de nov.

O País que Começou a Mover-se


Primeiro foi o ferro a rasgar o silêncio.


O comboio não chegava apenas com apitos e fumo: trazia consigo uma promessa nova, feita de ferro e de velocidade. Para um país habituado a medir a vida em passos curtos, a visão de uma locomotiva era quase um milagre, ou talvez uma ameaça.


Muitos olhavam-na como quem vê um animal desconhecido: a máquina que corria sem bois, sem vento e sem velas. E, no entanto, era a mesma terra a tremer, as mesmas aldeias a espreitar pelas janelas, como se o progresso fosse um visitante de passagem.


Lisboa e Porto aproximaram-se.


O tempo da viagem encolheu, os relógios começaram a ganhar importância, e as estações tornaram-se as novas praças do país.


Mas essa proximidade era ainda desigual: Bragança, Trás-os-Montes, o interior profundo continuava a ser o mesmo destino distante, quase inacessível.


A nação partia-se em dois ritmos — os que ouviam o apito do comboio e os que apenas o imaginavam. O progresso tem sempre estas fronteiras invisíveis: aproxima uns, isola outros.


O século XIX tornou-se, assim, um tempo de transição. Nem já imóvel, nem ainda vertiginoso.


Um país que ensaiava passos maiores, mas que ainda tropeçava nos próprios caminhos.


A carta que antes demorava treze dias a atravessar Portugal passou a chegar mais cedo, mas ainda com atraso suficiente para trazer ecos em vez de vozes.


O barco a vapor encurtava mares, mas não apagava a saudade. A novidade estava em poder ir — e, para muitos, em poder não voltar.


Foi neste compasso intermédio que Portugal começou a perder a inocência da imobilidade.


O lugar natal deixou de ser destino obrigatório e passou a ser apenas origem.


O comboio não transportava apenas passageiros; carregava também futuros possíveis.


Alguns encontraram no ferro e no fumo a promessa de sair da repetição, outros sentiram que começava ali o desenraizamento que hoje nos assombra.


Entre a aldeia imóvel e a cidade em movimento, o país aprendia a pressa sem ainda saber os seus custos.



Locomotiva a vapor com fumo denso, numa estação portuguesa do século XIX, simbolizando o início da modernidade e da velocidade.
Comboio a vapor em estação antiga

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Maria Mota Lopes
02 de set.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Vou apenas dizer obrigada.

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