O Livro do Sal e da Cinza
- Alberto Carvalho - Narrador

- 4 de nov.
- 11 min de leitura
Há lugares do mundo que se tornam, de tempos a tempos, um espelho partido onde a humanidade se olha e não se reconhece.
Darfur é um desses lugares. Digo “lugar” e falho a escala; digo “humanidade” e falho a intimidade do desastre.
Entre o silêncio e a cinza: o que ainda resta da nossa humanidade em Darfur?
Entre as duas falhas ergue-se um vazio: é o intervalo onde moram as crianças que não voltarão a ter nome, os velhos que já não guardam as safras, as mulheres que choram em voz baixa para não ensinar o medo às filhas. Não é uma metáfora. É um país inteiro a afundar num pântano de pó e de pólvora, enquanto as grandes capitais treinam a arte da linguagem que diz tudo sem comprometer nada.
Recordo-me de 2003 como quem regressa a uma sala de aula antiga: um mapa no quadro, setas vermelhas a indicar a geografia do horror, siglas novas, debates improvisados na rádio, petições que corriam de mesa em mesa. Havia, ao menos, um rumor de urgência—uma consciência incerta de que a palavra “genocídio” não devia ser pronunciada em vão.
Passaram mais de vinte anos e ficámos especialistas em relativizar a urgência. Aprendemos a sentar-nos à mesa com a desgraça e a falar dela num tom conveniente. Construímos a liturgia da preocupação: relatórios, briefings, notas de imprensa, fotografias com fundo neutro e soberba discreta. Entre uma cimeira e outra, os mortos arrumam-se sozinhos.
Alguém me dirá: “Mas o mundo é complexo; as alianças mudam; as potências regionais jogam a sua partida”.
Quem disser isto tem razão—e, apesar disso, erra. Porque há complexidades que não absolvem, apenas adiam o juízo. O adulto que decide ignorar o choro da criança fá-lo com as melhores justificações: está cansado, não quer interferir, não sabe por onde começar. O resultado, porém, permanece: a criança ficou sozinha. É esta a lição amarga de Darfur. Não nos faltam argumentos; falta-nos a coragem que devolve às palavras o valor de um começo.
A cidade de El Fasher caiu. Escrevo a frase devagar, como quem pousa um cálice para não o partir. Caiu, dizem as agências; eu prefiro dizer: “foi empurrada”. Porque as cidades, como os homens, raramente caem de livre vontade. Primeiro cercam-se os caminhos do pão, depois envenenam-se as fontes, por fim reescreve-se o mapa das saídas até que fugir deixe de ser uma hipótese e se torne apenas um outro nome para morrer mais tarde. Uma muralha de terra pode ser, em certas latitudes, uma sentença. Mas é uma sentença moderna: drones, artilharia, colunas de pick-ups como cavalaria de metal. Muda o cenário, a coreografia é a mesma: um grupo armado que aprende depressa, um exército regular que desaprende mais depressa ainda, e uma população civil abandonada à pedagogia da brutalidade.
Não me interessa, aqui, o inventário exaustivo das facções. Interessa-me o mecanismo moral que permite a repetição.
Em 2003, a nossa linguagem ainda corava. Em 2025, domina a técnica do desvio. O ministro fala em “preocupação séria”, o enviado especial “avalia com atenção”, o parceiro estratégico “nega qualquer envolvimento”. E no entanto chegam, por rotas que toda a gente conhece e ninguém confirma, os fluxos que alimentam as máquinas da morte. Um homem que vende armas aprende cedo a suportar o peso do silêncio—porque o silêncio rende.
É uma contabilidade feita em divisas fortes, ao abrigo do calor limpo do ar condicionado, com vista para uma cidade que brilha à noite. O que arde em Darfur não incomoda as luzes da avenida.
Acusam-me, às vezes, de dramatismo: “A tua prosa acende velas onde devias acender holofotes”. Talvez.
Mas, ao contrário do que se pensa, as velas não substituem os holofotes; recordam-lhes o ofício.
A luz pequena é a única que resiste ao corte da eletricidade. E o mundo, nos seus pontos cegos, funciona como um bairro de fornecimento incerto: a qualquer momento a rede cai, e só fica acesa a lâmpada dos que se debruçam por cima da mesa para continuar, apesar de tudo, a ler.
Ler é a primeira forma de resistência.
Ler devagar, com atenção, sem permitir que a linguagem feita para neutralizar nos adormeça.
Quando nos dizem “tragédia humanitária”, devemos ouvir “pessoas concretas”. Quando nos dizem “sítio remoto”, devemos ver um rosto. Quando nos dizem “equilíbrios regionais”, devemos perguntar “a favor de quem?”
Sei que há, em cada um de nós, uma fadiga que se confunde com maturidade. “Já vimos isto”, pensamos, “isto repete-se”.
Mas a repetição não é argumento para a indiferença; é precisamente o seu fruto. Não há ciclo histórico que não seja alimentado por resignações individuais. E não, não creio no moralismo fácil do “se cada um fizesse a sua parte”.
A nossa parte—essa expressão modesta e grandiosa—nem sempre é dar dinheiro, assinar petições, partilhar um post.
Às vezes, a nossa parte é mais difícil: manter viva a capacidade de reconhecer um crime mesmo quando os seus autores aparecem de gravata; recusar o léxico que transforma vítimas em “colaterais”; aprender a dizer “genocídio” quando todos esperam que digamos “conflito”. É uma guerra também de palavras, e perdê-la é preparar a derrota seguinte no terreno.
Quem são, afinal, os nossos aliados?
A pergunta não é diplomática, é moral.
Um aliado é alguém com quem partilho não o interesse, mas a medida do humano. Se nos habituámos a pactuar com quem financia a devastação—e depois a cobrir o mal com uma manta de eufemismos—, então perdemos o critério que tutela a possibilidade do futuro. “Mas o mundo funciona assim”, replicam-me.
Só funciona assim porque aceitámos que funcione. Houve um tempo em que as igrejas, as universidades, os jornais, os sindicatos, as ordens profissionais erguiam a voz e, com todas as suas contradições, impunham uma vigilância ética às escolhas do poder.
Hoje, muitas dessas instituições aprenderam a arte da gestão reputacional: dizem o que é suficiente para não perder prestígio, nunca o que é necessário para não perder a alma.
A diferença é subtil no currículo; é abissal no juízo.
Que fazer, então, deste “aqui e agora” que nos envergonha e nos paralisa?
Não tenho um plano para salvar Darfur.
Tenho, apenas, uma teimosia: a de nomear.
Nomear é o primeiro ato político.
Um povo sem nome desaparece; um crime sem nome repete-se; um agressor sem nome é promovido.
Precisamos de restituir às palavras o seu peso específico.
Quando a esfera pública chama “intervenção” ao que é invasão, “estabilização” ao que é ocupação, “apoio logístico” ao que é cumplicidade, uma comunidade de falantes fica mais pobre e, por isso, mais governável. A pobreza da língua é o melhor investimento da tirania.
Há quem fale de “choque civilizacional” para explicar o que não quer compreender. É uma expressão conveniente porque poupa trabalho: cria um antagonista metafísico e apaga responsabilidades concretas.
O que está em curso, porém, não é a colisão entre civilizações; é a colisão entre interesses e vidas.
Se a civilização significa alguma coisa, é a primazia da vida sobre o interesse. Quando perdemos esse eixo, podemos ter arranha-céus de três dígitos e escritórios inteligentes; seremos, ainda assim, bárbaros de luvas brancas.
O século XXI ensinou-nos a combinar sofisticação técnica com regressão ética. Chamamos “melhoria” a tudo o que se move depressa. Mas nem todas as velocidades redimem; algumas apenas aceleram o caminho para a queda.
Penso, com frequência, nos rostos que não veremos.
A política internacional gosta de mapas sem gente; a televisão prefere estatísticas que caibam num gráfico. Mas uma comunidade que abdica de imaginar o rosto do outro prepara, sem o saber, a sua própria desintegração. O rosto do outro é o meu espelho moral. Não falo de sentimentalismo; falo de uma disciplina.
Exige-se, hoje, um treino do olhar que nos restitua à experiência da singularidade. Não é fácil. Vivemos distraídos por design; educados para preferir o fluxo à presença.
O rosto—qualquer rosto—é uma interrupção: convoca-nos, desarruma a agenda, impede que o sofrimento seja apenas “conteúdo”.
Por vezes, é a poesia que chega primeiro onde a política tarda. Um verso, uma imagem, uma narrativa curta podem furar o verniz do cansaço.
Não defendo que substituamos a ação pela estética; proponho que deixemos a linguagem respirar de tal modo que recupere a potência de agir.
Em Darfur, como em tantos sítios de fronteira, a poesia não é luxo: é a forma concreta de dizer “a vida não acabou”. É por isso que os que esmagam civilizações começam sempre por empobrecer a canção, a aula, a praça. Controlar a voz é a metade do caminho para controlar o corpo.
Escrever sobre Darfur, desde Portugal, é expor-se à acusação de distância. Aceito a acusação e devolvo uma pergunta: que outra coisa temos senão a distância para aprendermos a responsabilidade?
A proximidade cria laços, mas também ilude: o vizinho que vemos torna-se, por definição, o mais real. A distância obriga a uma escolha moral mais exigente: reconhecer como “meu” alguém que não fala a minha língua, não reza no meu templo, não comerá nunca à minha mesa. Essa escolha—o reconhecimento de uma fraternidade que não se funda na familiaridade—é a pedra de toque de qualquer civilização que queira merecer esse nome.
Lembro-me de um velho professor que dizia: “O inverso do ódio não é o amor; é a indiferença”. Discuti com ele a frase, por achar que o amor devia ser o oposto de tudo o que destrói.
Hoje, começo a entender: o ódio, pelo menos, concede a presença; a indiferença retira-a.
É a indiferença que permite as contabilidades frias, as reuniões para “avaliar cenários”, as parcerias que se multiplicam nos salões de hotéis.
O ódio mata; a indiferença cria o clima onde matar deixa de ser um escândalo e passa a ser um dado. Por isso, a primeira militância que vos proponho é simples e radical: não sejamos indiferentes. Não por caridade; por justiça.
“Mas o que queres que eu faça, agora, aqui, neste instante concreto?” Talvez apenas isto: recusar a anestesia.
Ler mais, melhor, demoradamente.
Exigir nomes, datas, cadeias de decisão, transferência de recursos.
Perguntar aos nossos governantes que escalas morais os guiam quando apertam as mãos certas e evitam pronunciar as palavras perigosas.
Cobrar às empresas que financiam, por via direta ou indireta, a perpetuação do horror: não apenas relatórios ESG elegantes, mas a coragem de perder um contrato.
Reaprender a boicotar o que nos fere por dentro.
Reaprender a recompensar quem paga um preço por dizer a verdade. Reaprender, enfim, a aceitar que o sofrimento do outro é um acontecimento político no meu país.
“E a religião?”—perguntam-me alguns, com a gentileza desconfiada que reserva à fé um lugar lateral, decorativo.
Respondo-lhes com a franqueza possível: se a religião não for capaz de gritar por Darfur, não merece o seu nome. E digo “religião” em sentido amplo: a busca daquilo que nos liga a algo maior do que nós.
Não estou a pedir sermões; peço liturgias de justiça.
Peço a coragem de nomear o pecado com rigor: é pecado beneficiar do sangue alheio, é pecado negociar a vida, é pecado travestir de “prudência” o medo, é pecado confundir neutralidade com sabedoria.
A neutralidade, em tempos de massacre, é uma forma requintada de cobardia.
Os evangelhos—que tantos gostam de citar nos almoços de domingo—são muito claros: quem passa adiante do homem caído não é neutro; é cúmplice.
Se isto vos parece duro, pensem na dureza de uma mãe que alimenta o filho com ração animal. É essa imagem, quase inaceitável, que devíamos projetar nas paredes limpas onde se reúnem os homens importantes.
Que cada discurso começasse por essa fotografia invisível: uma mulher a dividir a vergonha com a necessidade.
Entre nós, há quem diga que “a política é a arte do possível”. Eu proponho uma emenda: a política é a arte de alargar o possível para salvar o necessário. Se o possível inclui pactos que sustentam a morte, então é a própria arte que precisa de ser reaprendida.
Há, claro, quem procure consolo em comparações. “Há tragédias em todo o lado”, dizem, como quem distribui culpas para não assumir nenhuma.
É verdade: o mapa do sofrimento é amplo. Mas a amplitude não nos dispensa da precisão. Quem tudo lamenta, nada enfrenta.
A coragem não se mede pelo número de causas que abraçamos; mede-se pela coerência com que recusamos a lógica que as envenena a todas. Essa lógica, hoje, chama-se utilitarismo de gabinete: o cálculo que transforma princípios em variáveis. Um homem decente pode ceder uma vez; uma comunidade decente não pode fazer da cedência um método.
Talvez o mais difícil, neste momento, seja reaprender a esperança. Não a esperança ligeira, distraída, que se resolve em slogans.
A esperança que peço tem textura de trabalho: teima, demora-se, admite derrotas, corrige-se, volta. É a esperança dos que constroem um poço sabendo que a água não chega amanhã.
Numa época apaixonada por resultados imediatos, esta esperança custa a aceitar.
Preferimos promessas de impacto a seis meses; preferimos o gráfico que sobe; preferimos a fotografia de grupo. Mas a justiça—essa ciência frágil—cresce como as árvores: leva tempo, precisa de raízes, suporta ventos. Não prometo, portanto, finais luminosos. Prometo, apenas, que cada gesto coerente vale por si e por quem virá depois.
É pouco? É tudo o que temos quando as cidades caem.
Escrever, para mim, é uma forma de testemunho. Não substitui a ação; recusa o esquecimento.
Quando termino uma página, imagino sempre um leitor que me contradiz: “Para que serve isto?” Respondo-lhe sem ironia: serve para que, no dia em que te pedirem silêncio em nome da prudência, tu reconheças a armadilha.
Serve para que, quando te disserem que “não há provas”, tu saibas onde procurá-las e a quem cobrar. Serve para que, se algum dia tiveres de escolher entre ganhar influência e guardar a consciência, tu aches natural perder influência.
Há decisões que só se tomam bem quando foram preparadas por uma longa fidelidade ao que sabemos ser verdade.
E a verdade, aqui, é esta: estão a matar pessoas em Darfur com a ajuda direta ou indireta de quem podia impedi-lo.
O resto são notas de rodapé.
Podemos discutir pormenores, e devemos: quem financia, quem arma, quem protege, quem lucra. Mas o enunciado principal é inamovível. É a partir dele que devemos reordenar a agenda. Tudo o que não servir este enunciado serve, de algum modo, o seu contrário.
Às vezes, no fim de um texto, tento construir uma imagem que me ajude a guardar o essencial.
Hoje, vejo uma mesa de madeira, lisa, comprida, num pátio sem paredes. Em cima da mesa, um livro grosso editado sem luxo. O título: O Livro do Sal e da Cinza. Sal: o que conserva, o que impede a corrupção, o que dá gosto ao que seria insípido. Cinza: o que sobra do fogo, a memória do que ardeu.
Este livro imaginário reúne as histórias de quem, num tempo de deserto, não aceitou que a fome fosse apenas um “contexto”.
É um livro escrito por mãos diversas: a médica que ficou mais uma semana no hospital cercado; o jornalista que recusou a equivalência cínica entre algozes e vítimas; o padre que abençoou sem perguntar pela filiação; a embaixadora que perdeu o lugar por ter dito o que não era para dizer; o cidadão anónimo que sustentou, discretamente, um corredor de fuga.
Quero, quando me for pedido o balanço do meu tempo, poder inscrever uma linha nesse livro. Talvez esta página seja, para mim, um começo.
Que ninguém se iluda: não há neutralidade possível diante de um massacre.
A neutralidade é um país confortável, com iluminação pública e boas escolas, onde se vive sem sobressaltos e se aprende a arte de não ver.
Mas o conforto tem um preço: as fronteiras desse país alargam-se às custas de terras devastadas, e um dia, sem aviso, a devastação atravessa a ponte e instala-se no centro da cidade.
Pagamos então em pânico o que antes recusámos em coragem.
Ainda vamos a tempo de outra economia: a que investe já na honestidade, mesmo quando não rende dividendos; a que escolhe parceiros por caráter e não só por capacidade; a que devolve à justiça o seu lugar primeiro e à diplomacia o seu nome limpo.
Termino como comecei: Darfur é um espelho partido. Se não gostamos do que vemos, não vale a pena fugir do espelho. É preciso refazer o rosto. Não é uma operação plástica; é uma conversão.
As conversões não acontecem por decreto; nascem de gestos pequenos, repetidos, fiéis.
Talvez a nossa geração não consiga resolver o que outras deixaram por fazer. Mas pode, ao menos, interromper a herança da indiferença. Pode ensinar aos seus filhos que “longe” não é sinónimo de “irrelevante”. Pode exigir, das suas instituições, menos publicidade e mais coragem. Pode começar hoje, sem comunicados, sem bandeiras, sem selfies.
Às vezes, começar é calar para ouvir; outras vezes é levantar a voz sabendo que ela treme; quase sempre é insistir quando a desistência parecer sensata.
Em El Fasher, alguém há de estar a guardar uma história para a contar quando for possível contar.
Guardemos, deste lado, a responsabilidade de a escutar sem negociar a verdade.
Que quando esse alguém disser “caímos”, nós possamos responder “levantámo-nos contigo”. E que, ao dizê-lo, não mintamos.
Porque há promessas que não se fazem ao acaso.
São promessas que fundam uma comunidade.
Se ainda somos capazes de prometer, então ainda somos capazes de recomeçar. E este recomeço—chamem-lhe política, ética, fé, cidadania—talvez seja o primeiro gesto que devolve à palavra “humanidade” um sentido que não envergonhe os mortos.
Autor: Alberto Carvalho
© Rockwell — Imagem do arquivo Unsplash, utilizada com autorização para fins editoriais em AlbertoCarvalho.com.




Desde ontem, tenho estado a pensar neste texto tão profundo, sob um tema tão triste e preocupante, autêntico genocídio, por vezes até por nós esquecido!!!Só mesmo o Alberto Carvalho, para me deixar, ainda mais, a refletir sobre o que O MUNDO INTEIRO deveria estar a fazer. Obrigada pelo seus temas tão pertinentes
Simplesmente avassalador.
Poderoso ensaio moral e político que confronta a anestesia contemporânea diante da violência. A lucidez crítica da análise política, denunciando não apenas o genocídio em Darfur, mas, sobretudo, o colapso moral que permite sua repetição.
Uuma reflexão sobre o tempo e a tempo,