top of page
  • Ver página da Literatura Secreta no Facebook

Alberto Carvalho — Narrador para quem ainda escuta as palavras

O espaço de Alberto Carvalho, crónicas, contos e reflexões para quem lê devagar

O peso invisível dos dias

Lisboa acorda como se fosse um palco vazio.


As ruas, ainda marcadas pela geometria da calçada, estendem-se em silêncio.


Não há corpos que as percorram, não há vozes que se entrelacem com o rumor das pedras antigas.


Apenas candeeiros erguidos como sentinelas de uma memória que ninguém parece escutar.


A luz da manhã cobre as fachadas com cores que hesitam entre o abandono e a promessa, como se cada casa carregasse uma biografia suspensa.


Há cidades que falam pela multidão, e há cidades que falam pelo seu silêncio.


Lisboa, nesse instante, não é feita de pressa, nem de turistas, nem de vendedores que anunciam os seus produtos em pregões esquecidos.


É feita de ausência. E a ausência tem sempre um peso — o peso invisível dos dias.


Esse peso não se mede em números nem em relógios.


Mede-se no ar parado, no som abafado de uma janela que se fecha devagar, no espaço entre duas sombras que não chegam a encontrar-se.


Talvez seja esse o segredo que as cidades escondem: quando ficam desertas, revelam não apenas o que nelas falta, mas aquilo que nelas somos incapazes de ver quando a vida transborda.


É fácil perdermo-nos no excesso: excesso de palavras, de imagens, de promessas.


Difícil é reconhecer o vazio como parte da própria respiração do tempo.


O vazio é o intervalo onde o mundo decide se avança ou se pára.


E cada rua de Lisboa, quando deserta, torna-se um livro aberto nesse idioma raro que só os que caminham sozinhos sabem ler.


Penso em todos os que passaram por ali: homens que regressaram de guerras e procuraram o cheiro familiar de uma cozinha acesa; mulheres que se debruçaram sobre varandas para acenar a filhos que partiam para o mar; crianças que desenharam no pó da rua a sua primeira letra incerta.


E penso também em todos os que nunca voltarão. Porque cada cidade é feita de ausentes tanto quanto de presentes.


Um dia, talvez, inventaremos uma ciência capaz de medir os fantasmas que habitam as ruas. Até lá, ficamos entregues à intuição: o saber íntimo de que entre cada porta fechada existe um rumor que não morre. O silêncio é apenas uma pele que encobre o coração batendo.


Há quem diga que o vazio é insuportável.


Eu acredito no contrário.


O vazio é a condição para que qualquer gesto tenha sentido.


É no espaço deixado entre duas notas que a música encontra harmonia; é no branco que a palavra desenha o seu contorno; é no intervalo da respiração que a vida se afirma como dádiva.


Por isso caminho por esta Lisboa sem gente como quem atravessa uma biblioteca em chamas silenciosas.


Cada cor nas paredes — ocre, azul, vermelho gasto — é um volume que resiste à erosão do esquecimento.


Cada candeeiro apagado é uma vírgula de ferro numa frase ainda por escrever.


E cada sombra que se prolonga na calçada é uma lembrança de que os dias são maiores do que nós.


Mas a grande pergunta permanece: o que fazemos com esse peso invisível?


Uns fogem.


Preenchem-se de ruído para não ouvir o que o silêncio lhes pede.


Outros suportam-no como um fardo, convencidos de que a vida é apenas uma soma de obrigações.


Poucos ousam acolhê-lo. Porque acolher o vazio exige coragem: a coragem de ver-se a si mesmo sem a rede de distrações que a sociedade oferece.


Lisboa, neste instante, oferece essa prova.


Quem a olha sem pressa percebe que o mundo não nos deve nada.


Que tudo é provisório: as casas, os candeeiros, as próprias cores que se esbatem com a luz.


E é nesse reconhecimento da provisoriedade que nasce a única eternidade possível — aquela que carregamos quando nos deixamos transformar pelo instante.


Há quem viva como se o tempo fosse inimigo.


Eu prefiro pensar que o tempo é apenas um mestre severo.


Obriga-nos a perder para podermos compreender.


Ensina-nos que só o que passa pode ser lembrado.


E Lisboa, vazia, é uma lição aberta: cada pedra da calçada já foi pisada por alguém que desapareceu, mas cujo peso invisível ainda molda a cidade.


Pergunto-me se não seremos nós também parte desse mesmo enredo.


Talvez um dia alguém olhe para a rua onde hoje me detenho e sinta a minha própria ausência como um peso discreto.


Talvez o futuro seja apenas isso: a soma dos vazios que deixamos atrás de nós.


E no entanto, há uma beleza radical em tudo isto.


Porque não existe vazio que não seja também promessa.


Uma rua deserta pode a qualquer instante encher-se de passos; um candeeiro apagado pode acender-se na noite; uma casa silenciosa pode abrir a janela e libertar um riso.


O vazio, afinal, não é fim — é começo.


Olho de novo para Lisboa.


Não espero que me responda.


Basta-me escutá-la na sua linguagem de pedra e luz.


Sei que cada cor nas fachadas é um eco do que já foi vivido. Sei que cada candeeiro é um convite à espera.


Sei que o silêncio não é ausência, mas outra forma de presença.


E percebo então que o peso invisível dos dias não é maldição, mas herança.


É a lembrança de que pertencemos a algo maior do que nós, algo que nos ultrapassa e nos sustenta.


Cada rua, cada sombra, cada vazio é uma página da nossa história coletiva.


Não precisamos temer o silêncio.


Precisamos apenas de aprender a habitá-lo.


Lisboa, nesse dia sem gente, ensinou-me isso.


E eu escrevo agora para não esquecer: o vazio não é o contrário da vida.


É a sua raiz secreta.


Elian Morvane


Rua de Lisboa sem pessoas, com candeeiros e fachadas coloridas, simbolizando o silêncio e o peso invisível dos dias.
Rua deserta e em silêncio

4 comentários

Avaliado com 0 de 5 estrelas.
Ainda sem avaliações

Adicione uma avaliação
Graciete
25 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Também gosto muito do silêncio. Há dias em que o procuro é sinto um alívio

Curtir

Ana Cabral
24 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

O vazio é o intervalo onde o mundo decide se avança ou se pára.

Curtir

Maria Mota Lopes
23 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Hoje, mais um belo texto que leio! Parabéns. Como eu adora, também, o silêncio.

Curtir
O Caderno
O Caderno
23 de ago.
Respondendo a

Que bom que gostou, Maria! É por comentários como o seu que a escrita faz todo o sentido. E sim, o silêncio tem uma magia especial. Agradeço de coração o seu carinho.

Curtir
bottom of page