O peso invisível dos dias
- Elian Morvane

- 22 de ago.
- 4 min de leitura
Lisboa acorda como se fosse um palco vazio.
As ruas, ainda marcadas pela geometria da calçada, estendem-se em silêncio.
Não há corpos que as percorram, não há vozes que se entrelacem com o rumor das pedras antigas.
Apenas candeeiros erguidos como sentinelas de uma memória que ninguém parece escutar.
A luz da manhã cobre as fachadas com cores que hesitam entre o abandono e a promessa, como se cada casa carregasse uma biografia suspensa.
Há cidades que falam pela multidão, e há cidades que falam pelo seu silêncio.
Lisboa, nesse instante, não é feita de pressa, nem de turistas, nem de vendedores que anunciam os seus produtos em pregões esquecidos.
É feita de ausência. E a ausência tem sempre um peso — o peso invisível dos dias.
Esse peso não se mede em números nem em relógios.
Mede-se no ar parado, no som abafado de uma janela que se fecha devagar, no espaço entre duas sombras que não chegam a encontrar-se.
Talvez seja esse o segredo que as cidades escondem: quando ficam desertas, revelam não apenas o que nelas falta, mas aquilo que nelas somos incapazes de ver quando a vida transborda.
É fácil perdermo-nos no excesso: excesso de palavras, de imagens, de promessas.
Difícil é reconhecer o vazio como parte da própria respiração do tempo.
O vazio é o intervalo onde o mundo decide se avança ou se pára.
E cada rua de Lisboa, quando deserta, torna-se um livro aberto nesse idioma raro que só os que caminham sozinhos sabem ler.
Penso em todos os que passaram por ali: homens que regressaram de guerras e procuraram o cheiro familiar de uma cozinha acesa; mulheres que se debruçaram sobre varandas para acenar a filhos que partiam para o mar; crianças que desenharam no pó da rua a sua primeira letra incerta.
E penso também em todos os que nunca voltarão. Porque cada cidade é feita de ausentes tanto quanto de presentes.
Há quem diga que o vazio é insuportável.
Eu acredito no contrário.
O vazio é a condição para que qualquer gesto tenha sentido.
É no espaço deixado entre duas notas que a música encontra harmonia; é no branco que a palavra desenha o seu contorno; é no intervalo da respiração que a vida se afirma como dádiva.
Por isso caminho por esta Lisboa sem gente como quem atravessa uma biblioteca em chamas silenciosas.
Cada cor nas paredes — ocre, azul, vermelho gasto — é um volume que resiste à erosão do esquecimento.
Cada candeeiro apagado é uma vírgula de ferro numa frase ainda por escrever.
E cada sombra que se prolonga na calçada é uma lembrança de que os dias são maiores do que nós.
Mas a grande pergunta permanece: o que fazemos com esse peso invisível?
Uns fogem.
Preenchem-se de ruído para não ouvir o que o silêncio lhes pede.
Outros suportam-no como um fardo, convencidos de que a vida é apenas uma soma de obrigações.
Poucos ousam acolhê-lo. Porque acolher o vazio exige coragem: a coragem de ver-se a si mesmo sem a rede de distrações que a sociedade oferece.
Lisboa, neste instante, oferece essa prova.
Quem a olha sem pressa percebe que o mundo não nos deve nada.
Que tudo é provisório: as casas, os candeeiros, as próprias cores que se esbatem com a luz.
E é nesse reconhecimento da provisoriedade que nasce a única eternidade possível — aquela que carregamos quando nos deixamos transformar pelo instante.
Há quem viva como se o tempo fosse inimigo.
Eu prefiro pensar que o tempo é apenas um mestre severo.
Obriga-nos a perder para podermos compreender.
Ensina-nos que só o que passa pode ser lembrado.
E Lisboa, vazia, é uma lição aberta: cada pedra da calçada já foi pisada por alguém que desapareceu, mas cujo peso invisível ainda molda a cidade.
Pergunto-me se não seremos nós também parte desse mesmo enredo.
Talvez um dia alguém olhe para a rua onde hoje me detenho e sinta a minha própria ausência como um peso discreto.
Talvez o futuro seja apenas isso: a soma dos vazios que deixamos atrás de nós.
E no entanto, há uma beleza radical em tudo isto.
Porque não existe vazio que não seja também promessa.
Uma rua deserta pode a qualquer instante encher-se de passos; um candeeiro apagado pode acender-se na noite; uma casa silenciosa pode abrir a janela e libertar um riso.
O vazio, afinal, não é fim — é começo.
Olho de novo para Lisboa.
Não espero que me responda.
Basta-me escutá-la na sua linguagem de pedra e luz.
Sei que cada cor nas fachadas é um eco do que já foi vivido. Sei que cada candeeiro é um convite à espera.
Sei que o silêncio não é ausência, mas outra forma de presença.
E percebo então que o peso invisível dos dias não é maldição, mas herança.
É a lembrança de que pertencemos a algo maior do que nós, algo que nos ultrapassa e nos sustenta.
Cada rua, cada sombra, cada vazio é uma página da nossa história coletiva.
Não precisamos temer o silêncio.
Precisamos apenas de aprender a habitá-lo.
Lisboa, nesse dia sem gente, ensinou-me isso.
E eu escrevo agora para não esquecer: o vazio não é o contrário da vida.
É a sua raiz secreta.
Elian Morvane




Também gosto muito do silêncio. Há dias em que o procuro é sinto um alívio
O vazio é o intervalo onde o mundo decide se avança ou se pára.
Hoje, mais um belo texto que leio! Parabéns. Como eu adora, também, o silêncio.