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Alberto Carvalho — Narrador para quem ainda escuta as palavras

O espaço de Alberto Carvalho, crónicas, contos e reflexões para quem lê devagar

A cor do silêncio

Foi sempre mais do que cabelo. Foi território.


Desde o primeiro gesto de uma escova, o corpo de uma mulher negra aprendeu que o mundo exige tradução — que a beleza, para ser aceite, tem de falar uma língua que não é a sua.


Michelle Obama compreendeu-o cedo, não como conceito, mas como sobrevivência.


Cada vez que o olhar público pousava sobre ela, havia uma contagem invisível de gestos, de tecidos, de cores, de ângulos. Era o peso de uma história inteira pendurado na raiz do cabelo.


Durante oito anos na Casa Branca, cada madeixa foi um ato político, cada escolha estética uma tentativa de decifrar o que o país toleraria ver. O mesmo povo que a aplaudia pela educação das filhas e pelo sorriso intacto pedia-lhe, em silêncio, que domesticara o reflexo.


As câmaras, mais do que o discurso, registravam a lisura do penteado, o brilho dos fios, a ausência de volume — como se a autoridade de uma mulher dependesse da obediência do seu cabelo.


Houve um tempo em que o ferro quente substituiu a liberdade, e o perfume químico do alisador tornou-se parte do ritual do poder.


Michelle percebeu que o cabelo crespo não seria apenas um traço biológico, mas uma metáfora viva da diferença.


O mesmo país que jurava celebrar a diversidade exigia-lhe a uniformidade. E ela, com a sabedoria dos que conhecem o abismo entre o que são e o que o mundo lhes permite ser, escolheu a estratégia mais antiga: o disfarce calmo.


Não o fez por vaidade. Fê-lo porque sabia que o corpo negro, na esfera pública, é uma provocação. E porque, no teatro político americano, a estética é uma forma de gramática. Aprendeu que cada fio rebelde podia ser lido como descuido, como ameaça, como afronta. Então decidiu guardar a sua rebeldia para o invisível — para o gesto secreto de resistir sem mostrar.


Mas o tempo, que tudo gasta, devolve-nos o essencial. Há um dia em que a raiz volta a crescer na sua direção natural, como quem reencontra o norte após uma longa travessia. As tranças regressam, não como adorno, mas como reconciliação. Cada fio entrelaçado é uma oração antiga, um mapa de pertença, uma forma de dizer “estou de volta ao meu próprio corpo”. Michelle Obama reaprendeu a habitar-se.


E, nesse gesto íntimo — o de deixar o cabelo ser o que sempre foi — há mais política do que em muitos discursos. É o corpo a recuperar o direito à verdade. A elegância deixa de ser sinónimo de adequação e passa a significar fidelidade: à textura, à história, à dor e à beleza que coexistem num mesmo reflexo.


O livro The Look parece, à superfície, um ensaio sobre estilo. Mas é, na verdade, um livro de anatomia — o retrato de um corpo que aprendeu a carregar a cor, o género e a memória como símbolos de um país que ainda não se compreendeu.


Cada fotografia é um espelho duplo: por fora, a figura serena; por dentro, a tensão invisível de quem precisa de medir cada centímetro de espontaneidade. Michelle escreve, com o cuidado de quem desenha cicatrizes, sobre aquilo que nunca se diz nas biografias oficiais: o preço da aceitação.


Há uma cena recorrente no imaginário das mulheres negras — o pente quente, a mãe a alisar os cabelos da filha ao domingo, o som breve do vapor quando o ferro encontra o couro cabeludo. É uma lembrança de ternura e dor, o eco de uma pedagogia antiga: que a ordem do mundo começa na cabeça. “Endireita o cabelo”, dizem as mães, querendo dizer “não lhes dês motivo”. Crescer sob essa disciplina é crescer num país que te mede pela docilidade dos teus fios.


Michelle Obama foi a primeira a transformar essa herança em diplomacia. Soube que o poder é, antes de mais, uma questão de aparência. Que o público americano, habituado à brancura do mito presidencial, veria no seu corpo uma nota dissonante. Por isso, enquanto o país aprendia a chamá-la “First Lady”, ela ensinava-o a ver nela mais do que um símbolo: uma mulher complexa, educada, vulnerável, estratégica.


Hoje, quando surge com tranças, o gesto é uma libertação silenciosa. Não precisa de explicação, nem de manifesto. Basta o som das câmaras e a naturalidade do movimento. O cabelo, que antes era uma concessão, torna-se agora uma escolha. E escolher, neste caso, é reescrever a história.


As tranças são antigas como o tempo. Em cada uma, há genealogias de resistência, mapas de fuga, códigos de pertença. As escravas africanas desenhavam rotas no couro cabeludo umas das outras — linhas que indicavam caminhos para a liberdade. Talvez, sem o saber, Michelle retome esse gesto: cada trança como um traço de regresso, uma bússola que aponta para casa.


A estética não é banalidade; é a forma visível de uma ética. E a política, nesse sentido, é uma arte de aparições. Michelle Obama entendeu que podia usar a superfície — o vestido, a postura, o cabelo — como um espelho onde o país se vê refletido e, por instantes, se interroga. Chamam-lhe “soft power”. Eu prefiro chamar-lhe liturgia: o ritual em que o corpo se oferece como tradução do invisível.


Há algo de profundamente poético neste percurso: uma mulher que passou anos a endireitar o cabelo para não assustar o mundo, e que agora, liberta do cargo e do peso simbólico, decide aparecer como é. E, no entanto, não há ressentimento. Apenas um sossego novo, uma ternura consigo mesma. O gesto de pentear é, afinal, um gesto de perdão.


Entre as fotografias do livro, há uma que a mostra a rir, com as tranças longas e soltas, a cabeça ligeiramente inclinada, como quem ouve um som distante. Talvez o som do tempo a reconciliar-se com ela. Talvez o som de uma liberdade que já não precisa de pedir licença.


A cor do silêncio, essa, permanece. Mas já não é a cor do medo — é a cor do regresso.


Autor: por Elian Morvane


Secção: Caderno das Sombras Claras



Michelle Obama, ex-primeira-dama dos Estados Unidos, retratada na Sala Verde da Casa Branca por Chuck Kennedy — símbolo de elegância, serenidade e representação feminina no poder.
Michelle Obama — Retrato oficial na Casa Branca

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