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Alberto Carvalho — Narrador para quem ainda escuta as palavras

O espaço de Alberto Carvalho, crónicas, contos e reflexões para quem lê devagar

O Negócio do Medo

Reservado aos Subscritores


Dizem-me muitas vezes que Portugal é um país pacífico.


E, no entanto, basta abrir o telejornal ou espreitar as capas dos jornais para perceber que a palavra “crime” é uma das mais repetidas, como se o dia só tivesse começado quando se anuncia um assalto, uma violência ou uma fuga espetacular.


Fico a pensar nesse vício que temos em olhar o mundo através da mancha de sangue, como quem acredita que só o que dói é que prova que ainda estamos vivos.


Talvez seja uma superstição moderna: se soubermos de um crime, o mal já aconteceu a outro e não a nós.


É o medo a funcionar como vacina.


Eu próprio cresci com essas histórias a rondar a casa.


Recordo-me de uma vizinha que falava todas as manhãs do “homem do saco”, uma figura que misturava mitologia com notícia mal digerida.


Diziam que roubava crianças à saída da escola e, no entanto, nunca ninguém conheceu a criança roubada.


A verdade é que aquele fantasma segurava-nos mais direitos do que qualquer polícia: punha-nos em fila, fazia-nos andar juntos e ensinava-nos a olhar duas vezes antes de atravessar a rua.


Não havia jornais nem televisões a mostrar estatísticas, mas havia o rumor, esse jornal oral que enchia os becos de fantasmas e que talvez tenha sido o primeiro grande noticiário do bairro.


Com os anos, percebi que a relação entre crime e política é mais funda do que parece.


Não se trata apenas da lei que se escreve nos gabinetes, mas da forma como o medo é usado para governar.


Quando um governante fala em “segurança”, raramente fala do candeeiro que precisa de ser arranjado ou da patrulha que devia passar à noite.


Fala antes de um sentimento que se quer alimentar.


O medo é o pão diário da política.


Não é de hoje: já os romanos sabiam que manter a população sobressaltada era uma boa maneira de a ter controlada.


“Panem et circenses”, pão e circo — e, se faltar o pão, inventa-se o circo do medo.


A violência urbana é um tema que os jornais adoram.


Uma carteira roubada no centro de Lisboa pode ter mais impacto mediático do que uma lei inteira sobre habitação.


É um paradoxo curioso: a violência real atinge poucos, mas a sensação de insegurança atinge quase todos.


É isso que dá audiência, e a audiência dá poder.


O medo é, no fundo, uma moeda.


Houve uma tarde em que entrei num café no Porto e oiço dois homens a discutir se a cidade estava mais perigosa do que antes.


Um dizia: “agora não se pode andar de noite na Baixa”.


O outro respondia: “antigamente havia mais navalhadas, só não havia era televisão para mostrar”.


A memória é uma fotografia a cores que vai desbotando consoante as necessidades do discurso.


A ideia de que “agora é que está mau” é um truque antigo — cada geração precisa de acreditar que o presente é pior do que o passado, para se sentir mais experiente e mais dura.


A política sabe disso.


Não há campanha eleitoral sem um parágrafo sobre a criminalidade.


Mas o curioso é que, muitas vezes, os números oficiais mostram descidas na violência e nos crimes graves.


A estatística é fria, mas o discurso aquece-a, e de repente o país inteiro acredita que vive cercado.


É uma espécie de alucinação coletiva, mas uma alucinação útil: dá votos, dá capas, dá discursos inflamados.


Eu podia contar-lhe dezenas de histórias que vi ou ouvi.


Recordo um miúdo que foi apanhado a roubar fruta no mercado.


O polícia agarrou-o, o vendedor insultou-o, mas no meio da cena apareceu uma velha que lhe deu uma moeda e disse: “vai comprar o que precisas, mas não roubes”.


Naquele instante, o crime foi desfeito não por uma sentença judicial, mas por um gesto que misturou compaixão e autoridade moral.


Penso muitas vezes nesse episódio quando ouço falar de segurança.


Quem garante a verdadeira segurança não é apenas o Estado: é também a teia invisível de justiça espontânea que as pessoas constroem quando decidem não virar a cara.


O problema é que, nas últimas décadas, o discurso público foi trocando a compaixão pela desconfiança.


Tornou-se normal apontar o dedo ao vizinho, desconfiar do miúdo de boné, evitar o bairro onde vivem mais pobres.


E, claro, aparecem os vendedores de soluções rápidas: mais polícia, mais prisões, mais controlo.


O medo é um negócio, e há quem o venda embalado em slogans fáceis.


Mas nunca vi o medo resolver o que quer que seja: apenas multiplica portas fechadas, câmaras de vigilância e uma solidão urbana que é, ela própria, uma forma de violência.


Um amigo meu, jornalista, dizia-me: “a notícia de crime é a mais fácil de escrever: tem sempre vítima, culpado e polícia”.


É uma narrativa pronta, com personagens claras, que dispensa reflexão.


Talvez por isso seja tão lida.


Mas o que falta em muitas dessas histórias é o silêncio: o que levou alguém a roubar?


O que antecedeu o momento em que um braço se ergueu?


Há uma sociologia invisível que raramente cabe na notícia.


E é aqui que a política devia entrar, não como fabricante de medo, mas como curadora das causas.


O que faz crescer o crime não é apenas a falta de polícia, é a falta de futuro.


Não é apenas a rua mal iluminada, é a escola que fecha cedo, o trabalho que não chega, a casa que não se paga.


A violência é sempre o último capítulo de uma biografia de carências.


Mas a política prefere começar pelo fim, porque é mais fácil mostrar algemas do que mostrar soluções lentas.


Em muitas cidades portuguesas há bairros que se tornaram nomes malditos, etiquetas que escondem tanto quanto revelam.


Quem nunca lá entrou imagina-os como territórios de guerra, mas quem lá vive sabe que também são lugares de vizinhança, de festas de rua, de crianças a jogar à bola.


Essa duplicidade raramente passa na imprensa, porque a imprensa gosta de simplificar.


Um bairro é perigoso, outro é seguro.


A realidade, no entanto, é feita de misturas.


A literatura ensinou-me que o crime é um dos temas mais antigos da narrativa.


De Édipo a Dostoiévski, o que nos prende é sempre o enigma da transgressão: por que razão alguém atravessa a linha?


A diferença é que na literatura temos tempo para olhar para dentro, enquanto nos jornais só se olha para fora.


É essa ausência de profundidade que nos faz reféns do medo.


Uma vez, numa aldeia transmontana, ouvi um velho dizer: “a justiça chega sempre tarde, mas o medo chega sempre a horas”.


Achei uma definição perfeita do nosso tempo.


Vivemos cercados por estatísticas, relatórios e polícias municipais, mas a sensação de insegurança continua instalada.


Talvez porque não é de números que se trata, mas de perceções. E a perceção é fácil de manipular.


Há um detalhe curioso: em Portugal, os crimes que mais nos assustam são os que menos acontecem.


O homicídio é raro, mas ocupa páginas e páginas.


Já a violência doméstica, que é diária, fica muitas vezes escondida, tratada como rotina.


É uma espécie de cegueira seletiva.


E aqui, outra vez, entra a política: o que escolhe dar visibilidade e o que escolhe silenciar.


O crime que não se vê é, por vezes, o que mais marca uma sociedade.


Escrever sobre isto é também arriscar cair no mesmo vício: dar palco ao medo.


Por isso, tento lembrar-me da cena da velha no mercado: um gesto pequeno que anulou um crime inteiro.


Talvez devêssemos escrever mais sobre esses momentos em que a solidariedade vence a violência.


Não para adoçar a realidade, mas para mostrar que o medo não é a única lente.


Quando penso no futuro, não imagino cidades cheias de câmaras e drones.


Imagino praças cheias de gente, onde se possa circular sem sentir que o outro é um inimigo.


Sei que é uma visão quase utópica, mas a política devia servir para isso: para erguer utopias praticáveis, e não apenas muros.


E termino com outra memória.


Numa noite em Lisboa, vi um homem segurar o casaco de uma criança perdida até que a mãe apareceu.


Não houve crime, mas houve a possibilidade de um crime.


O que ficou foi o cuidado anónimo, esse instinto de proteger o que não é nosso.


Talvez seja isso que devêssemos guardar como notícia: que o medo existe, sim, mas que há também uma teia invisível de gestos simples que ainda nos mantém juntos.


AC


Carros de polícia estacionados e silhueta de corpo desenhada a giz no chão, simbolizando crime e insegurança
O negócio do medo nas ruas portuguesas

11 comentários

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Graciete
25 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Estou de acordo. Li tudo e fiquei impressionada. Gosto muito das suas escritas que são diretas e dizem tudo. Obrigada

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Convidado:
23 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Uma análise perfeita dos tempos que vivemos. Por isso gosto de o ler. Obrigada

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O Caderno
O Caderno
23 de ago.
Respondendo a

Obrigado! Saber que o meu texto é lido como uma "análise perfeita" do nosso tempo é um dos maiores elogios que poderia receber. Fico profundamente grato pelas suas palavras.👏

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Convidado:
22 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Gostei! Vou partilhar.

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O Caderno
O Caderno
23 de ago.
Respondendo a

Que ótimo! Muito obrigado por gostar e por pensar em partilhar! É a melhor recompensa que um narrador pode ter. Agradeço de coração! ❤️

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Convidado:
21 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Vou partilhar. Talvez mais alguém leia. Obrigada.

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Respondendo a

Obrigado eu. Partilhar é dar ao texto uma nova respiração. Que chegue a quem precise de o ler.

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Convidado:
21 de ago.

Texto perfeito na análise do que são os nossos tempos. Posso republicar a fim de partilhar a mais gente para que reflictam sobre isto? Obrigado

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Respondendo a

Pode e deve. A palavra não me pertence: pertence a quem a lê e a transforma em reflexão própria. Se ajudar alguém a pensar sobre o tempo que vivemos, já cumpriu a sua função.

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