Tenho de lhe confessar uma coisa
- O Caderno

- 4 de ago.
- 7 min de leitura
Atualizado: 5 de ago.
Tenho de lhe confessar uma coisa.
Não sei bem como começar, por isso começo assim: confesso.
E se ainda está a ler, talvez seja porque uma parte de si já pressentia que havia algo.
Não da minha parte, talvez — mas de alguém, nalgum lugar, que ficou calado tempo demais.
Tenho andado com isto preso à garganta há anos.
O que quer que isto seja.
Não é crime.
Não é vergonha.
Não é sequer extraordinário.
Mas pesa.
E há coisas que pesam não por serem grandes, mas por nunca terem sido ditas.
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Foi no verão.
Eu tinha vinte e quatro anos.
E ela… não sei se devo dizer o nome. Talvez mais tarde. Para já, chamemos-lhe E. Como se o silêncio também tivesse apelidos.
Conhecemo-nos numa fila.
Daquelas filas longas e inúteis onde o tempo se esquece de passar.
Ela estava à minha frente.
Trazia um livro do Herberto — o que já me pareceu, na altura, um milagre.
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Depois olhou para trás, viu que eu não tinha nada nas mãos, e disse:
— Vai ser uma espera longa.
— E eu esqueci-me do relógio — respondi.
Rimo-nos.
Depois calámo-nos.
Depois voltámos a rir.
E assim começou tudo — como todas as coisas começam: sem ninguém saber que começaram.
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Durante aquele mês, fomos tudo menos amantes.
Nunca nos tocámos, a não ser com os olhos.
Íamos a pé por Lisboa como dois conspiradores sem causa.
Falávamos de poesia como quem procura abrigo.
Bebíamos vinho - muito pouco - mas como se tivéssemos idade para aguentar a ressaca.
Não havia promessas, nem pressas.
Só aquele intervalo onde nada dói ainda.
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Lembro-me de uma vez em que choveu.
Sentámo-nos nos degraus de São Bento, e ela perguntou-me:
— O que é que nunca disseste a ninguém?
E eu respondi:
— Que tenho medo de ser como o meu vizinho.
Ela ficou em silêncio.
Depois disse:
— Eu também.
Nunca me explicou o que queria dizer. Nem eu perguntei.
Era assim: falávamos com uma corda presa ao peito.
Se puxássemos demasiado, partia-se.
Mas quero ser justo consigo: não estou aqui para romantizar o que não aconteceu.
Não estou a escrever para fazer de nós uma história.
Estou a escrever porque, desde então, nunca mais amei ninguém da mesma maneira.
Não por falta de tentativas — mas porque nada mais foi feito com aquela leveza.
Aquela urgência calma de quem tem medo, mas não foge.
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O que aconteceu depois?
Ela partiu.
Disse que ia “voltar ao norte”, e deixou um bilhete na minha caixa do correio. Três linhas. Duas certezas. Um adeus.
Posso continuar?
Esta é a primeira vez que escrevo não apenas sobre o mundo, mas de dentro de uma dor que nunca se resolveu.
E talvez por isso, quem ler — pare.
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Nunca respondi ao bilhete.
Não por orgulho.
Nem sequer por medo.
Mas porque havia qualquer coisa naquele adeus que parecia final.
Como se ela soubesse que, se dissesse mais uma palavra, eu iria atrás.
E talvez ela não quisesse isso. Ou pior: talvez quisesse, mas não podia.
Durante anos, guardei o bilhete.
Dobrado, quase ilegível, numa edição velha da Poesia Toda.
Escondido entre páginas que ela nunca chegou a ler.
Às vezes abria-o como quem revisita uma ferida, não para a curar, mas para confirmar que ainda dói.
Era o meu ritual de silêncio.
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Entretanto, casei.
Não com ela, evidentemente.
Com uma mulher boa, serena, que me deu três filhos e uma casa com janelas viradas a sul.
Nunca houve infidelidade.
Nunca houve mentira.
Mas também — e isso custa escrever — nunca houve aquele tipo de amor.
O tipo de amor que faz com que a cidade mude de cheiro quando ela entra numa sala.
A minha mulher percebeu isso antes de mim.
Uma vez, durante um jantar qualquer, olhou para mim e disse:
— Estás aqui, mas não estás.
Eu sorri, fiz uma piada qualquer, e ela não insistiu.
É isso que fazem as pessoas boas: não nos obrigam a confessar o que não temos coragem de dizer.
Sei que podia ter feito melhor.
Mas também sei — e isto é a parte mais dura — que, se pudesse voltar atrás, não mudaria nada.
Porque há coisas que só sobrevivem inteiras enquanto permanecem incompletas.
E E., seja lá o que tenha sido, ficou inteira porque nunca foi ferida pelo quotidiano.
Nem pelo tédio. Nem pela rotina dos dias bons demais.
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Há semanas em que me esqueço dela.
Depois passo por uma mulher de cabelo apanhado a ler num jardim, e ela volta.
Ou ouço uma canção que nunca ouvimos juntos, mas que parece ter sido escrita para os dois.
E ela volta.
Sempre volta.
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Uma vez escrevi-lhe uma carta.
Tinha cinquenta e um anos. Estava sozinho em casa, chovia, e senti aquele impulso infantil de fazer alguma coisa.
Escrevi três páginas.
Relembrei os dias de 98, as conversas sobre Herberto, os passos pela cidade, até as coisas que nunca chegámos a dizer.
No final da carta, assinei com o nome completo.
Nunca a enviei.
Ficou numa gaveta da secretária.
De vez em quando, quando me sento para escrever, olho para ela.
Como se esperasse uma resposta.
Mas cartas não respondem a cartas.
Pessoas é que respondem.
E, no nosso caso, a única coisa que houve foi uma troca de silêncios.
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Não sei se está viva.
Já procurei.
Uma vez, no início da internet, pus o nome dela num motor de busca.
Apareceu uma tese de mestrado, talvez dela.
Um nome parecido, numa cidade pequena.
Mas não tive coragem de abrir.
Não queria saber se foi feliz.
Ou pior: que tenha sido feliz sem mim.
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Outra vez, anos mais tarde, ouvi alguém chamar por “E.” num comboio.
Estava no outro lado do corredor, com os fones nos ouvidos, a fingir que lia.
O nome ficou a flutuar no ar como uma nota que nunca se resolve.
Olhei — claro que olhei.
Mas não era ela.
Ou então era, mas já não tinha o mesmo rosto.
E eu, covarde, preferi não confirmar.
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Tenho-me perguntado, ultimamente, porque é que isto ainda importa.
Já passaram mais de vinte anos.
Já vivi mais do que alguma vez pensei viver.
Já fui pai, já enterrei amigos, já tive doenças, já perdi dentes e ilusões.
E, no entanto, o que me comove é ainda esta coisa frágil e antiga.
Esta mulher que nunca me pertenceu.
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Talvez seja isso o amor: o que resiste a todos os finais.
E talvez seja isso que precisava de lhe confessar: Que a coisa mais real que vivi nunca chegou a acontecer.
Houve dias em que pensei em escrever-lhe um livro.
Não uma carta, mas um livro inteiro.
Disfarçado de ficção, claro.
Onde ela não fosse ela, e eu não fosse eu.
Onde tudo fosse dito como quem inventa.
Mas depois percebi que não consigo.
Porque se escrevesse um livro sobre ela, matava-a.
E eu quero que viva — mesmo que só dentro de mim.
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Por isso escrevo isto agora.
Não para ela.
Nem sequer para si.
Escrevo para mim.
Porque há palavras que, se não forem escritas, apodrecem por dentro.
Ontem, abri a tal edição do Poesia Toda.
O bilhete ainda lá está. O papel amareleceu. O traço esbateu-se.
Mas a última linha ainda se lê.
Diz assim: “Não sei o que somos, mas sei que não te esqueço.”
Eu também não.
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Hoje fiz uma coisa que nunca tinha feito.
Fui ao sótão.
Há anos que me prometia arrumar aquilo.
Sacos, caixas, objetos sem nome nem utilidade.
Uma espécie de museu das intenções por cumprir.
Subi as escadas com o corpo pesado — não pela idade, mas por saber o que procurava.
E encontrei.
A caixa onde guardei tudo o que tem o nome dela, mesmo sem o ter escrito.
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Havia um postal de Sintra que nunca enviei.
Um marcador de livros que lhe roubei.
Um guardanapo com um verso do Eugénio que copiei da contracapa de um livro dela.
E a tal carta. A que nunca mandei.
Li-a em voz alta.
Era a minha voz, mas parecia outra.
Como se fosse um homem mais novo a tentar salvar o que não percebeu que estava a perder.
Depois fechei a caixa.
❦
Mas não a voltei a esconder.
Trouxe-a para baixo.
Está agora na estante, entre dois livros que nunca li.
Não como relíquia, nem como altar.
Mas como lembrança de que houve uma vez em que fui inteiro, mesmo sem nunca o ter dito a ninguém.
Talvez esteja a escrever isto por medo.
Medo de que o tempo leve tudo.
Medo de morrer com esta ternura enterrada.
Ou talvez seja amor.
Não o amor que se exige, que se grita, que se cobra. Mas o outro. O que só quer durar.
Sei que ela nunca vai ler isto.
Mas o que me espanta é perceber que isso já não importa.
Importa que tenha sido escrito.
Porque o silêncio é um bom lugar para guardar segredos.
Mas não é um bom lugar para morar para sempre.
Tenho de lhe confessar mais uma coisa.
Durante muito tempo, achei que esta história não valia a pena ser contada.
Porque não teve beijos, nem ruturas, nem reencontros dramáticos.
Ninguém fugiu com ninguém. Não houve traições. Só ausência. Só silêncio.
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Mas agora percebo: há histórias que valem por não terem acontecido.
E há sentimentos que sobrevivem porque não se gastaram.
Se tivesse ido atrás dela, se tivesse forçado um destino, talvez hoje estivesse a escrever outra coisa.
Talvez um relato de mágoas, de rotinas falhadas, de um amor que se deformou com os dias.
Mas não.
Fiquei.
Ela partiu.
E entre nós ficou esta espécie de eternidade suspensa — que não é felicidade, nem dor, nem lamento. É apenas memória viva.
❦
Nunca soube se ela quis que eu a procurasse.
Nunca saberei.
Mas há noites em que imagino que sim.
E há dias em que me convenço que não.
Vivo nesse intervalo.
É lá que construí o que sou.
Os meus filhos cresceram.
Alguns partiram também.
Às vezes voltam.
Trazem filhos, pressas, telemóveis. São bons rapazes. Honestos. Educados.
Nenhum deles saberá, nunca, que o pai teve medo de amar.
Talvez um dia encontrem este texto.
Talvez não.
Talvez o leiam e não reconheçam o homem que o escreveu.
Ou talvez percebam que todos temos um nome escondido em silêncio.
Não escrevo mais.
Já está tudo dito.
Se ficou até aqui, então agradeço-lhe.
Porque não escrevi isto para ser lido por muitos.
Escrevi para ser lido por alguém.
E isso basta.
❦
Agora posso fechar a caixa.
E voltar a guardar o bilhete.
Não como quem se despe de um peso, mas como quem abraça — finalmente —o que nunca deixou de estar vivo.
FIM




Pena ter um fim prematuro. Leria mais um mas páginas...
Lindo!!!!
A ilusão do que nunca conseguimos realizar.
Adorei!
Gostei que tivesse partilhado este segredo. Todos nós temos alguns, mas escrevê-los com tanta mestria é mais difícil que a partilha. Obrigada