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Alberto Carvalho — Narrador para quem ainda escuta as palavras

O espaço de Alberto Carvalho, crónicas, contos e reflexões para quem lê devagar

Culpa Hereditária

CULPA HEREDITÁRIA


Foi preciso Mário Centeno levantar os olhos para se ouvir o que tantas vezes se cala: “Não é a mulher de ninguém. É a Rita Poiares.”


E, nesse instante, não foi apenas um governador a responder.


Foi um país inteiro que se viu ao espelho — e o que lá estava não era bonito.


Porque em Portugal, ainda hoje, quando uma mulher sobe, é quase sempre arrastada por insinuações.


Não se pergunta se é competente.


Pergunta-se com quem está.


Não se olha para o currículo.


Olha-se para o apelido.


É assim no Estado, nos partidos, nos jornais e nos corredores dos ministérios.


A ideia de que uma mulher só chega longe se “alguém” a empurrou — ou se “ela própria” se deitou — continua a circular com a naturalidade dos lugares comuns.


E ninguém se indigna, porque “sempre foi assim”.


Mas não é.


Nem sempre foi.


Nem tem de continuar a ser.


Desta vez, cruzaram-se com Mário Centeno — e ele respondeu.


Mas na maioria dos casos, as mulheres não têm quem as defenda em direto.


E então, o boato instala-se, o mérito apaga-se, e a violência simbólica passa por normalidade.


Mais grave ainda: são os mesmos que acusam que depois negam direitos mínimos às mesmas mulheres.


A extrema-direita que desvaloriza a ascensão de uma mulher é a mesma que quer apagar o direito ao luto de uma mãe que perde um filho antes de nascer.


Que se recusa a reconhecer a dor.


Que transforma a vida em bandeira, mas não em compaixão.


Há feridas que não se curam com leis.


Curam-se com lucidez — e com coragem.


A mesma coragem que falta a tantos homens para reconhecer que o sucesso de uma mulher não é uma ofensa à sua virilidade.


É tempo de falar disto.


Alto e claro.


Porque há mulheres que se sentam à mesa do poder, sim.


Mas não para servir cafés — para decidir.


E não por serem esposas, filhas ou conhecidas — mas porque são capazes.


Porque estudaram.


Porque trabalharam mais do que muitos.


E porque aguentaram caladas o que nenhum homem toleraria.


As palavras de Centeno disseram mais do que mil editoriais.


Mas não chega.


Agora é preciso que o país inteiro diga o mesmo.


AC

MULHER
MULHER

2 comentários

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Convidado:
29 de jul.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

A frase de Centeno foi um gesto raro: nomear a pessoa, não a relação. Mas o que este texto revela é mais fundo.

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O Caderno
O Caderno
29 de jul.
Respondendo a

Fico muito grato por ter percebido e de forma rápida. A frase foi o gesto visível — mas o que doeu, e ainda dói, vem de muito antes. Escrever foi uma forma de nomear o que tantas vezes passa em silêncio. Obrigado por teres lido para lá das palavras.

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