Culpa Hereditária
- Alberto Carvalho - Narrador

- 28 de jul.
- 2 min de leitura
CULPA HEREDITÁRIA
Foi preciso Mário Centeno levantar os olhos para se ouvir o que tantas vezes se cala: “Não é a mulher de ninguém. É a Rita Poiares.”
E, nesse instante, não foi apenas um governador a responder.
Foi um país inteiro que se viu ao espelho — e o que lá estava não era bonito.
Porque em Portugal, ainda hoje, quando uma mulher sobe, é quase sempre arrastada por insinuações.
Não se pergunta se é competente.
Pergunta-se com quem está.
Não se olha para o currículo.
Olha-se para o apelido.
É assim no Estado, nos partidos, nos jornais e nos corredores dos ministérios.
A ideia de que uma mulher só chega longe se “alguém” a empurrou — ou se “ela própria” se deitou — continua a circular com a naturalidade dos lugares comuns.
E ninguém se indigna, porque “sempre foi assim”.
Mas não é.
Nem sempre foi.
Nem tem de continuar a ser.
Desta vez, cruzaram-se com Mário Centeno — e ele respondeu.
Mas na maioria dos casos, as mulheres não têm quem as defenda em direto.
E então, o boato instala-se, o mérito apaga-se, e a violência simbólica passa por normalidade.
Mais grave ainda: são os mesmos que acusam que depois negam direitos mínimos às mesmas mulheres.
A extrema-direita que desvaloriza a ascensão de uma mulher é a mesma que quer apagar o direito ao luto de uma mãe que perde um filho antes de nascer.
Que se recusa a reconhecer a dor.
Que transforma a vida em bandeira, mas não em compaixão.
Há feridas que não se curam com leis.
Curam-se com lucidez — e com coragem.
A mesma coragem que falta a tantos homens para reconhecer que o sucesso de uma mulher não é uma ofensa à sua virilidade.
É tempo de falar disto.
Alto e claro.
Porque há mulheres que se sentam à mesa do poder, sim.
Mas não para servir cafés — para decidir.
E não por serem esposas, filhas ou conhecidas — mas porque são capazes.
Porque estudaram.
Porque trabalharam mais do que muitos.
E porque aguentaram caladas o que nenhum homem toleraria.
As palavras de Centeno disseram mais do que mil editoriais.
Mas não chega.
Agora é preciso que o país inteiro diga o mesmo.
AC




A frase de Centeno foi um gesto raro: nomear a pessoa, não a relação. Mas o que este texto revela é mais fundo.