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Alberto Carvalho — Narrador para quem ainda escuta as palavras

O espaço de Alberto Carvalho, crónicas, contos e reflexões para quem lê devagar

Justiça à Medida do Partido

Dois Pesos


Pedro Magalhães é investigador, cientista político, e um dos rostos mais respeitados da análise empírica da opinião pública em Portugal.


No dia 28 de Julho de 2025, partilhou no seu perfil de Twitter os resultados de um estudo que deveria preocupar — e envergonhar — todos os democratas, sejam eles de direita, de esquerda ou do centro sem morada.


O estudo, realizado com Rui Costa Lopes, Nuno Garoupa e Luís de Sousa, e publicado na revista Political Psychology, parte de uma pergunta simples e inquietante: será que os portugueses valorizam de forma igual os direitos fundamentais dos acusados — como a presunção de inocência ou o direito à reputação — consoante o partido do político acusado?


A resposta, infelizmente, é clara: não.


No inquérito experimental, os investigadores apresentaram aos inquiridos um cenário genérico de corrupção: um político suspeito de receber dinheiro em troca de favorecer um concurso público.


Depois, pediram que os participantes avaliassem a importância de proteger certos direitos do acusado: a privacidade, o bom nome, a presunção de inocência.


Mas havia uma variável escondida: o político em causa, na história apresentada, era ora líder do partido preferido do inquirido, ora apenas um militante desse partido, ora alguém do partido mais detestado pelo inquirido.


O resultado foi cru e inequívoco: os portugueses defendem o Estado de Direito quando lhes convém.


Se o político era do seu partido de eleição, os inquiridos consideravam “muito importante” que se protegessem os seus direitos fundamentais.


Se era do partido rival, esses mesmos direitos tornavam-se secundários.


A justiça, afinal, muda de peso conforme a camisola.


É uma constatação grave.


E não é nova — mas é agora medida com rigor científico.


A literatura internacional já identificava esta tendência: a justiça como campo de batalha política, onde o garantismo é privilégio dos “nossos” e a punição exemplar é dever perante os “outros”.


O estudo agora publicado vem confirmar que também em Portugal, mesmo entre eleitores comuns, há uma erosão ética profunda: uma espécie de justiça tribal, em que o crime é menos grave se cometido por quem fala como nós, e os direitos do acusado são mais incómodos se ele votar ao contrário.


Não é apenas hipocrisia: é a falência moral de uma cultura cívica.


Porque se os princípios democráticos — como o direito ao bom nome, à privacidade, ao devido processo — forem vistos como instrumentos estratégicos em vez de garantias universais, então deixaram de ser princípios.


Passam a ser armas.


Usadas por uns para abater os outros.


Neste contexto, a Justiça perde o seu valor simbólico e torna-se uma arma branca de arremesso — que só corta num sentido.


Pedro Magalhães, com a sobriedade habitual, resume a conclusão no último tweet: Na responsabilização criminal, é preciso defender os direitos dos meus, mas acabar com o excesso de garantismo para os outros. 


Essa frase devia estar afixada à porta de cada parlamento, de cada redação, de cada tribunal.


Porque isto não é um desvio da norma — é o espelho da cultura política dominante.


É por isso que se abrem telejornais com buscas ainda sem acusação.


É por isso que se destrói a reputação de uma pessoa em três minutos e se pede contenção só quando é “dos nossos”.


É por isso que a justiça se enreda em ciclos de suspeição pública, enquanto os verdadeiros culpados — sejam eles quais forem — se escondem atrás da lama que todos ajudaram a levantar.


Não escrevo para defender culpados.


Escreve para defender a ideia de que todos — todos — devem ser protegidos pelo mesmo conjunto de direitos.


Porque se há algo mais perigoso do que um corrupto impune, é um inocente linchado por conveniência partidária.


E se queremos uma democracia limpa, ela começa — não no fim dos julgamentos — mas no início das nossas convicções.


AC

Montagem simbólica com dois políticos lado a lado, um aplaudido por uma multidão com bandeiras do seu partido, o outro apupado — mesmo sendo acusados do mesmo crime.
O juízo moral mudou de lugar: foi parar às bancadas do estádio político

6 comentários

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Convidado:
29 de jul.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

O mais assustador é que já nem estranhamos quando a justiça depende da cor da camisola. Este texto diz aquilo que tantos pensam mas poucos dizem: que estamos a transformar os direitos em armas e a cidadania num jogo de claques. Não se trata de defender culpados, mas de salvar a decência. E isso começa muito antes do tribunal. Começa na forma como escolhemos os nossos silêncios.

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O Caderno
O Caderno
29 de jul.
Respondendo a

Obrigado por ter lido com tanta clareza no olhar. Às vezes, o mais difícil não é dizer o que incomoda — é encontrar quem o reconheça sem ruído. A justiça começa, como bem diz, na escolha dos nossos silêncios. E há silêncios que gritam mais do que mil discursos. Obrigado por ter escutado e por ter feito o texto.

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Convidado:
29 de jul.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Parabéns ao Pedro e ao Alberto.

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O Caderno
O Caderno
29 de jul.
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Muito obrigado. Foi um privilégio escrever a partir do trabalho do Pedro — e uma alegria partilhá-lo com quem ainda lê com atenção e sentido. Obrigado pelo carinho.

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Ana Carvalho
29 de jul.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Já era bastante óbvia, esta falta de ética tão portuguesa, da defesa do "seu grupo" - politico, religioso, desportivo. Mas foram as ultimas eleições, que mais evidenciaram esta "particularidade" nacional.


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O Caderno
O Caderno
29 de jul.
Respondendo a

Tem toda a razão: essa lealdade cega ao grupo, seja ele qual for, tem servido demasiadas vezes para adiar a justiça e calar a consciência. As últimas eleições apenas tornaram visível o que já estava entranhado. Obrigado por ter lido — e por nomear, com lucidez, o que tantos preferem varrer para debaixo da identidade.

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