Teletrabalho à Venda | Como o Governo Está a Privatizar os Nossos Direitos
- O Caderno

- 29 de jul.
- 3 min de leitura
A Corda e o Telemóvel
Durante anos disseram-nos que o teletrabalho era o futuro.
Que reduziria a pegada ecológica, equilibraria a vida familiar, descentralizaria as oportunidades.
Era a utopia da conciliação, vendida com fundo branco, estantes organizadas e sorrisos ao Zoom.
Mas como tantas promessas modernas, também esta veio com rodapé: o que parece um direito, é muitas vezes apenas uma oportunidade para cortar custos.
E quando os cortes se fazem à conta da dignidade, não há modernidade que nos salve.
O Governo aprovou um anteprojeto que abre caminho à redução de direitos associados ao teletrabalho.
Em nome da negociação coletiva, abre-se a porta para que normas como o pagamento do trabalho suplementar ou a rigidez do horário possam ser “adaptadas” — leia-se, diluídas — por convenções que, na prática, nem sempre protegem o lado mais fraco.
É uma engenharia jurídica discreta: não se elimina o direito, apenas se flexibiliza.
Não se rasga o Código do Trabalho, apenas se permite costurá-lo de outro modo — mais barato, mais “competitivo”, mais conveniente para quem decide.
Mas há uma verdade que insiste em manter-se inteira: o teletrabalho pode ser uma conquista civilizacional, sim — mas também pode ser o novo nome da precariedade.
Em Portugal, como se sabe, a negociação coletiva não é um campo nivelado.
Os grandes sindicatos, por mais firmes que sejam, enfrentam empresas onde a pressão por “resultados” ou “eficiência” facilmente se sobrepõe à memória das lutas laborais.
E do outro lado, muitos trabalhadores isolados, em casa, entre e-mails e microfones desligados, sem a força do coletivo, nem sequer do olhar do colega ao lado.
Que negociação real pode haver assim?
A ideia de que o “direito ao teletrabalho” não está em causa é uma meia-verdade.
Porque um direito esvaziado de condições materiais para ser exercido não é um direito: é um simulacro.
Se trabalhar em casa significa estar sempre disponível, se as horas extra deixam de ser pagas por convenção, se o descanso se torna ambíguo — então o teletrabalho deixa de ser uma conquista e passa a ser uma forma nova, e mais difícil de vigiar, de exploração.
E sim, podemos admitir que haja exceções: realidades onde patrões e trabalhadores chegam a bons acordos, com equilíbrio e visão.
Mas a legislação não se deve fazer a pensar nas exceções — deve proteger contra os abusos.
Talvez o mais inquietante nisto tudo seja o tom com que o Governo apresenta a proposta: como quem resolve um problema técnico.
Como se reduzir encargos fosse um gesto neutro, desprovido de consequências humanas.
Mas não é.
Cortar um direito é sempre uma decisão política — e ética.
É escolher um lado, mesmo quando se finge imparcialidade.
Dizem-nos que a medida trará “mais margem” para as empresas.
O que não nos dizem é onde fica, nessa margem, a vida concreta das pessoas.
A sua exaustão invisível.
O seu quarto transformado em escritório.
A ansiedade de receber notificações fora de horas.
A solidão que não se vê nas folhas de Excel.
O teletrabalho não é inimigo da justiça social — mas pode ser, se continuar a ser tratado como um privilégio individual e não como um direito coletivo, regulado com clareza e exigência.
Porque o que está em causa não é só um modelo de trabalho — é o modo como queremos viver.
Se a economia precisa de flexibilidade, que seja com responsabilidade.
Se as empresas precisam de espaço para respirar, que não seja à custa de quem trabalha até tarde sem saber quando desligar.
Num país onde a produtividade raramente se traduz em qualidade de vida, a corda não pode continuar sempre do mesmo lado.
Porque um telemóvel ligado 24 horas não é liberdade. É servidão com wi-fi.
AC




Perfeito!
Mais um mergulho no escuro, oferecido graciosamente pelo governo neste Agosto escaldante.
E nem deram por isso, deixaram-se ir ...
Excelente...mas, muitos nem sequer reparam no que foi dito...a anestesia foi muito forte...nem sei se conseguem recuperar
Brilhante! Muito oportuno e isento. 👏