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Alberto Carvalho — Narrador para quem ainda escuta as palavras

O espaço de Alberto Carvalho, crónicas, contos e reflexões para quem lê devagar

Teletrabalho à Venda | Como o Governo Está a Privatizar os Nossos Direitos

A Corda e o Telemóvel


Durante anos disseram-nos que o teletrabalho era o futuro.


Que reduziria a pegada ecológica, equilibraria a vida familiar, descentralizaria as oportunidades.


Era a utopia da conciliação, vendida com fundo branco, estantes organizadas e sorrisos ao Zoom.


Mas como tantas promessas modernas, também esta veio com rodapé: o que parece um direito, é muitas vezes apenas uma oportunidade para cortar custos.


E quando os cortes se fazem à conta da dignidade, não há modernidade que nos salve.


O Governo aprovou um anteprojeto que abre caminho à redução de direitos associados ao teletrabalho.


Em nome da negociação coletiva, abre-se a porta para que normas como o pagamento do trabalho suplementar ou a rigidez do horário possam ser “adaptadas” — leia-se, diluídas — por convenções que, na prática, nem sempre protegem o lado mais fraco.


É uma engenharia jurídica discreta: não se elimina o direito, apenas se flexibiliza.


Não se rasga o Código do Trabalho, apenas se permite costurá-lo de outro modo — mais barato, mais “competitivo”, mais conveniente para quem decide.


Mas há uma verdade que insiste em manter-se inteira: o teletrabalho pode ser uma conquista civilizacional, sim — mas também pode ser o novo nome da precariedade.


Em Portugal, como se sabe, a negociação coletiva não é um campo nivelado.


Os grandes sindicatos, por mais firmes que sejam, enfrentam empresas onde a pressão por “resultados” ou “eficiência” facilmente se sobrepõe à memória das lutas laborais.


E do outro lado, muitos trabalhadores isolados, em casa, entre e-mails e microfones desligados, sem a força do coletivo, nem sequer do olhar do colega ao lado.


Que negociação real pode haver assim?


A ideia de que o “direito ao teletrabalho” não está em causa é uma meia-verdade.


Porque um direito esvaziado de condições materiais para ser exercido não é um direito: é um simulacro.


Se trabalhar em casa significa estar sempre disponível, se as horas extra deixam de ser pagas por convenção, se o descanso se torna ambíguo — então o teletrabalho deixa de ser uma conquista e passa a ser uma forma nova, e mais difícil de vigiar, de exploração.


E sim, podemos admitir que haja exceções: realidades onde patrões e trabalhadores chegam a bons acordos, com equilíbrio e visão.


Mas a legislação não se deve fazer a pensar nas exceções — deve proteger contra os abusos.


Talvez o mais inquietante nisto tudo seja o tom com que o Governo apresenta a proposta: como quem resolve um problema técnico.


Como se reduzir encargos fosse um gesto neutro, desprovido de consequências humanas.


Mas não é.


Cortar um direito é sempre uma decisão política — e ética.


É escolher um lado, mesmo quando se finge imparcialidade.


Dizem-nos que a medida trará “mais margem” para as empresas.


O que não nos dizem é onde fica, nessa margem, a vida concreta das pessoas.


A sua exaustão invisível.


O seu quarto transformado em escritório.


A ansiedade de receber notificações fora de horas.


A solidão que não se vê nas folhas de Excel.


O teletrabalho não é inimigo da justiça social — mas pode ser, se continuar a ser tratado como um privilégio individual e não como um direito coletivo, regulado com clareza e exigência.


Porque o que está em causa não é só um modelo de trabalho — é o modo como queremos viver.


Se a economia precisa de flexibilidade, que seja com responsabilidade.


Se as empresas precisam de espaço para respirar, que não seja à custa de quem trabalha até tarde sem saber quando desligar.


Num país onde a produtividade raramente se traduz em qualidade de vida, a corda não pode continuar sempre do mesmo lado.


Porque um telemóvel ligado 24 horas não é liberdade. É servidão com wi-fi.


AC

Mulher a trabalhar num computador portátil em casa, representando os desafios e riscos associados às novas normas de teletrabalho propostas pelo Governo português.
Um mulher trabalha a partir de casa sob novas regras de teletrabalho em Portugal

6 comentários

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Convidado:
11 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Perfeito!

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O Caderno
O Caderno
13 de ago.
Respondendo a

Fico feliz que tenha sentido o texto dessa forma.

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Convidado:
06 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Mais um mergulho no escuro, oferecido graciosamente pelo governo neste Agosto escaldante.

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escadacima
06 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

E nem deram por isso, deixaram-se ir ...

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Convidado:
06 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Excelente...mas, muitos nem sequer reparam no que foi dito...a anestesia foi muito forte...nem sei se conseguem recuperar

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Convidado:
05 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Brilhante! Muito oportuno e isento. 👏

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