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Alberto Carvalho — Narrador para quem ainda escuta as palavras

O espaço de Alberto Carvalho, crónicas, contos e reflexões para quem lê devagar

Sefarad no Espelho de Portugal

Atualizado: 20 de ago.

A presença sefardita não é nota de rodapé — é capítulo fundador da nossa história.


Há nomes que, quando pronunciados, soam como um eco mais antigo do que o país que hoje julgamos ser. “Sefarad” é um desses nomes.


Não cabe só nos mapas: atravessa-os.


É uma palavra que não nasceu connosco, mas que, há muitos séculos, nos escolheu para ser casa — e também para ser ferida.


Muito antes de Portugal existir, muito antes até de a cruz cristã assinalar templos e caminhos, já havia hebreus a habitar este território.


Vieram com as marés de comércio e risco, quando os portos se enchiam de línguas diferentes e os mercados eram mais vastos do que as fronteiras conhecidas.


Vieram com os fenícios, talvez com as sombras de Cartago, talvez com o eco de um acordo entre Salomão e o rei de Tiro, muito antes de a palavra “ibérico” ter nacionalidade.


A história guardou-lhes vestígios mínimos — uma pedra gravada, moedas perdidas, orações sobreviventes em português, ditas em sinagogas distantes, como Amesterdão, muitos séculos depois de terem partido à pressa, perseguidos.


É sempre assim: a memória dos perseguidos cabe em objetos pequenos, mas resiste mais do que a dos perseguidores.


Houve tempos em que aqui encontraram espaço para viver, negociar, estudar, orar — com menos muros e menos fogueiras.


E houve depois a viragem, quando a mão que antes os tolerava se fechou em punho.


A Inquisição não só dispersou famílias, mas tentou apagar uma parte da própria espinha dorsal cultural que ajudaram a construir.


A língua portuguesa ficou com feridas e marcas desse encontro e dessa violência.


Ainda hoje, certas expressões que repetimos sem pensar carregam ecos antigos — umas com veneno, outras com cumplicidade involuntária.


Mas a relação entre Portugal e os sefarditas nunca foi simples.


É uma história feita de proximidade e expulsão, de reconhecimento e negação, de raízes que não se deixam arrancar e de ramos cortados à força.


Mesmo quando já eram “outros” no papel, continuavam a ser “nossos” no trabalho, na ciência, nas rotas marítimas, no pensar o mundo para lá do horizonte.


A lei de 2013, que abriu a porta da cidadania a descendentes de sefarditas expulsos, foi mais do que um ato jurídico: foi uma admissão pública de que não somos completos sem eles.


É uma frase que Portugal disse tarde e a medo, mas que tinha de ser dita.


E talvez seja isso que Sefarad nos lembra: que um país é feito não apenas do que quis ser, mas também do que tentou apagar e não conseguiu.


Que a identidade é uma herança tanto dos encontros como das fraturas.


E que não há espelho limpo sem aceitar as imagens que nele persistem, mesmo as que a história quis estilhaçar.


AC


Vestígios sefarditas em Portugal
Símbolos judaicos, testemunho da presença sefardita em território português.

4 comentários

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Convidado:
11 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Belo resumo da história que se repete na actualidade

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O Caderno
O Caderno
13 de ago.
Respondendo a

Obrigado, Maria Mota Lopes. Fico muito satisfeito por saber que o texto transmitiu essa ligação entre a história e o presente — é nesse diálogo que ela continua viva.

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Ângela Lisboa
11 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

De qualquer forma, parece que esse reencontro está a ser feito mais do lado do oportunismo do que da herança

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O Caderno
O Caderno
13 de ago.
Respondendo a

Obrigado, Ângela Lisboa, pelo seu comentário. A sua observação é importante: quando o reencontro se faz mais pelo oportunismo do que pela herança, perde-se parte da verdade e do valor que deveria sustentar essa ligação.

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