Quando a família pesa mais do que a vítima
- Alberto Carvalho - Narrador

- 10 de ago.
- 3 min de leitura
Atualizado: 20 de ago.
Justiça portuguesa falha vítimas, alerta Conselho da Europa
Há relatórios que se leem como um aviso.
O documento do GREVIO — Grupo de Peritos Independentes do Conselho da Europa, responsável por avaliar a aplicação da Convenção de Istambul — é um desses textos.
Publicado a 27 de maio de 2025, depois de observar a realidade portuguesa, aponta progressos inegáveis, mas não poupa nas palavras quando identifica um erro de fundo: o sistema judicial em Portugal, “privilegia a proteção da unidade familiar em detrimento da segurança das vítimas”.
É uma frase curta, mas o seu peso é de chumbo.
Não se trata de uma metáfora: refere-se a decisões concretas, tomadas em tribunais portugueses, onde a preservação do núcleo familiar — mesmo em contexto de violência — se sobrepôs ao direito da vítima viver sem medo.
Essa inversão de prioridades não é um detalhe técnico; é uma falha de justiça que pode custar vidas.
O relatório do GREVIO reconhece que Portugal avançou: a definição legal de violação passou a centrar-se no consentimento, foram criadas equipas especializadas, gabinetes de apoio junto do Ministério Público e recolhas de prova em 72 horas.
Mas a mesma avaliação denuncia o que ainda falha.
As sanções aplicadas a crimes de violência doméstica e sexual continuam, demasiadas vezes, a ser brandas e desproporcionadas.
Persistem atitudes patriarcais entre alguns magistrados.
E mantém-se a utilização, em processos judiciais, da chamada “síndrome de alienação parental” — um conceito sem validação científica e que o GREVIO recomenda que seja afastado, sobretudo quando há registo de violência doméstica.
Outra crítica grave diz respeito à proteção de emergência: as ordens podem demorar até 48 horas, exigem muitas vezes uma denúncia formal ou a existência de processo-crime, e há abrigos que só aceitam acolher mulheres mediante esse requisito.
Isto significa que uma vítima pode ficar exposta ao agressor no período mais perigoso — aquele em que decide romper o ciclo de violência.
Não são apenas questões processuais; são falhas judiciais que se traduzem, na prática, em insegurança física e emocional para quem já viveu o suficiente para não ter de provar o óbvio.
Entre as recomendações, o GREVIO pede formação obrigatória e contínua para magistrados, uma linha nacional de apoio 24 horas por dia, acesso imediato a abrigos sem barreiras burocráticas e revisão urgente de todos os procedimentos que atrasam a proteção.
Este não é um debate teórico.
É uma questão de prioridade moral.
Colocar a “unidade familiar” acima da integridade da vítima é esquecer que não há família digna desse nome quando o medo é a sua língua principal.
A justiça que hesita entre proteger a casa ou proteger quem nela sofre não cumpre a sua função: falha à lei, falha à sociedade e falha à própria ideia de justiça.
O relatório do GREVIO não é um manifesto político; é um espelho que nos é colocado à frente.
O que fazemos com o reflexo depende de nós. Podemos continuar a discutir percentagens, procedimentos e prazos.
Ou podemos decidir que a segurança da vítima é inegociável — e agir em conformidade.
No dia em que essa decisão for clara e sistemática, talvez já não precisemos de relatórios para nos lembrar do óbvio.
Fonte principal: Relatório GREVIO sobre Portugal, Conselho da Europa, 27/05/2025
Convenção de Istambul: Tratado internacional para a prevenção e combate à violência contra as mulheres e violência doméstica




O relatório não traz novidades, apenas evidencia a constatação diária. Formação de juizes, mas tambem das forças da ordem ( GNR, PSP) que são os primeiros a contactar com as vitimas. O texto está ( como usual) excelente.