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Alberto Carvalho — Narrador para quem ainda escuta as palavras

O espaço de Alberto Carvalho, crónicas, contos e reflexões para quem lê devagar

O Último Ofício de um Homem Livre

O Último Ofício


Conheci-o num banco.


Desses que há nos jardins das cidades pequenas, onde o tempo demora mais a passar e a conversa ainda tem o direito de não ir a lado nenhum.


Trazia um chapéu gasto, um casaco que cheirava a folhas secas e a leveza de quem já não precisa de provar nada.


Chamava-se Manuel, mas só o sabiam os papéis.


Para os filhos era o Pai.


Para os netos, o Avô.


Para os amigos, era o Manel do quiosque — que fora livreiro quando isso ainda dava para viver e, talvez mais importante, para pensar.


Aos 83 anos, já não pedia nada à vida, dizia ele.


“Mas há uma coisa que a idade não leva — a responsabilidade.”


Dizia isto enquanto via os rapazes passarem de skate e as miúdas rirem alto como só se ri antes de perceber o peso do mundo.


Era ali, naquele banco, que o Manel se encontrava com o país.


Lia o jornal de manhã, via as notícias ao fim da tarde e, entre uma coisa e outra, conversava.


Com estranhos, com vizinhos, com um ou outro cão que lhe lambia a mão como quem reconhece alguém de confiança.


Mas foi há pouco tempo que disse a frase que ainda hoje me persegue: “Não posso morrer sem lhes dizer isto.”


Referia-se aos filhos. E aos netos.


A uma geração que cresceu a ouvir falar de liberdade sem saber o preço do medo.


A uma juventude que se distrai entre ecrãs, memes e indignações instantâneas — e que, sem dar conta, começa a normalizar o inaceitável.


“Sabes,” disse-me um dia, “eu já fui novo.


Também achei que o mundo era meu.


Também quis rasgar os mapas antigos e fazer tudo de novo.


E ainda bem.


Mas havia uma coisa que nos segurava: sabíamos o que era a dor dos outros.”


Fez-se silêncio.


Não daqueles vazios, mas dos cheios.


“Agora”, continuou, “há quem se ria dos direitos humanos.


Há quem ache que proteger os fracos é fraqueza.


Há quem queira voltar aos tempos em que ser diferente era crime e ter coração era um problema.”


A sua voz não tremia.


O corpo sim — mas só de frio.


“Por isso, decidi: vou dizer-lhes.


Sempre que estiver com os meus filhos, com os meus netos, com os filhos dos meus amigos.


Vou dizer-lhes que a liberdade não é um dado adquirido.


Que a civilização é feita de pequenos gestos.


E que há uma coisa que nos distingue das trevas: a capacidade de sentir o outro.”


Começou a escrever cartas.


Uma para cada neto.


Em folhas lisas, com a caneta que guardava desde o 25 de Abril.


Nelas, não falava de partidos nem de ideologias.


Falava de bondade.


De discernimento.


De não pactuar com o ódio mesmo quando este se disfarça de justiça.


De não repetir o erro de calar por vergonha.


Aos domingos, reunia a família.


Fazia arroz de pato, punha Amália a tocar baixinho, e no fim, pedia silêncio.


— Deixem-me contar-vos uma história.


E contava.


A de um vizinho que fora perseguido por ser comunista.


A de uma rapariga expulsa da escola por amar outra mulher.


A de um primo que desapareceu para “trabalhos forçados” e nunca mais voltou.


Contava como quem segura um ramo frágil, com a urgência de quem sabe que, se não se disser, esquece-se. E se se esquece, repete-se.


“É esta”, dizia, “a minha última tarefa. Ensinar-vos a ver. A não serem cúmplices por omissão. A fazerem perguntas. A distinguirem coragem de arrogância. Justiça de vingança. E pátria de fanatismo.”


Lembro-me de um neto mais novo que lhe perguntou se isso ainda interessava.


“Claro que interessa,” respondeu.


“O mal nunca desaparece. Muda de roupa.”


O Manel não falava com raiva.


Falava com tempo.


Como quem rega uma árvore mesmo sem saber se vai viver para ver o fruto.


Houve quem achasse exagero.


Quem dissesse que os tempos são outros, que agora já não há perigo.


Ele sorria.


E respondia:“É quando deixamos de ter medo que o perigo se instala. A indiferença é o combustível da barbárie.”


Um dia, levou um dos netos a ver a antiga livraria. Era agora uma loja de coisas baratas, cheia de luzes falsas e sons repetidos. Olhou para a montra e disse:


— Aqui vendia-se pensamento. Agora vende-se ruído.


Não era lamento. Era constatação.


Quando fez 84, pediu apenas uma coisa: que os netos lhe escrevessem uma carta.


Não mensagens.


Não vídeos.


Uma carta.


Com tempo, com erros, com papel.


Recebeu sete.


E guardou-as todas na mesma caixa onde ainda tem a primeira que escreveu à sua mulher, em 1959.


Hoje, o Manel já não está no banco do jardim.


A artrite ganhou-lhe os joelhos e a rua começou a doer-lhe mais do que os sapatos aguentam.


Mas as cartas continuam.


Agora, deixa-as na mesa da cozinha.


Às vezes, em cima de um livro.


Outras, dentro do pacote das bolachas preferidas de cada neto.


Uma delas, a que deixou na última visita da neta mais velha, dizia assim:

“Filha, não sejas nunca cúmplice de quem ri quando os outros choram. O que se levanta contra a dignidade humana nunca é solução — é doença. E a única herança que te quero deixar é esta: sê sempre mais humana do que o mundo te pedir. É esse o verdadeiro ato de coragem.”

Se isto for sermão, que o seja.


Mas parece-me antes um testamento.


Não o de quem deixa bens, mas o de quem reparte o que sabe — enquanto ainda pode.


E se me perguntarem quem foi o Manel, direi apenas isto: Foi um homem que, antes de partir, lembrou aos seus que viver é ver o outro.


E que o último ofício da vida é impedir que o mundo se esqueça disso.


AC


Ilustração suave de um homem idoso sentado à mesa, a escrever uma carta à mão, com um semblante sereno e luz de fim de tarde a entrar pela janela — simbolizando a transmissão de valores entre gerações.
Avô a escrever uma carta à neta numa tarde de outono

5 comentários

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Luís Alberto Percheiro
06 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Infelizmente a sua preocupação é um facto, que sinto todos os dias cada vez mais. Tenho procurado alertar os meus 3 netos e até os pais, que, com formas de estar diferentes, parece viverem nesse mundo de ilusão. Mas tenho pouca esperança. De há uns anos a esta parte, resolvi só oferecer livros por datas de aniversários, na esperança de que algum dia os leiam. Apelidam-me de demasiadamente preocupado, só desejo que tenham razão. Acompanho muito mais o mais novo e tenho procurado levá-lo a ver tudo o que posso que lhe sirva para registar na memória e lhe desperte o pensamento. Há dias levei-o a ver uma exposição de fotografias em Almada de registos do 25 de Abril. A…

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Convidado:
05 de ago.

“ A indiferença é o combustível da barbárie “ , a frase que mais me marcou , na realidade a que me fez mais medo . De tão actual , de tão verdadeira . A indiferença mata , mas já não impressiona , porque “ os outros “ tornaram-se transparentes .

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Convidado:
05 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Chorei ao ler este texto. Obrigado.

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Ana
31 de jul.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Tive a sorte de ter um Manuel e um Eduardo, não iguais que ninguem o é , mas semelhantes ao senhor deste texto. Tocou-me profundamente. Sem empatia e conhecimento ( diferente de instrução) não há comunidade.

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O Caderno
O Caderno
02 de ago.
Respondendo a

Ana, há nomes que nos ficam dentro como bússolas antigas — e saber que teve um Manuel e um Eduardo que lhe ensinaram a liberdade com empatia e humanidade dá todo o sentido ao que escrevi; agradeço-lhe do coração, porque sem esse saber vivido, sem essa escuta que é anterior à instrução, nenhuma comunidade pode chamar-se tal.

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