O Último Ofício de um Homem Livre
- Alberto Carvalho - Narrador

- 29 de jul.
- 4 min de leitura
O Último Ofício
Conheci-o num banco.
Desses que há nos jardins das cidades pequenas, onde o tempo demora mais a passar e a conversa ainda tem o direito de não ir a lado nenhum.
Trazia um chapéu gasto, um casaco que cheirava a folhas secas e a leveza de quem já não precisa de provar nada.
Chamava-se Manuel, mas só o sabiam os papéis.
Para os filhos era o Pai.
Para os netos, o Avô.
Para os amigos, era o Manel do quiosque — que fora livreiro quando isso ainda dava para viver e, talvez mais importante, para pensar.
Aos 83 anos, já não pedia nada à vida, dizia ele.
“Mas há uma coisa que a idade não leva — a responsabilidade.”
Dizia isto enquanto via os rapazes passarem de skate e as miúdas rirem alto como só se ri antes de perceber o peso do mundo.
Era ali, naquele banco, que o Manel se encontrava com o país.
Lia o jornal de manhã, via as notícias ao fim da tarde e, entre uma coisa e outra, conversava.
Com estranhos, com vizinhos, com um ou outro cão que lhe lambia a mão como quem reconhece alguém de confiança.
Mas foi há pouco tempo que disse a frase que ainda hoje me persegue: “Não posso morrer sem lhes dizer isto.”
Referia-se aos filhos. E aos netos.
A uma geração que cresceu a ouvir falar de liberdade sem saber o preço do medo.
A uma juventude que se distrai entre ecrãs, memes e indignações instantâneas — e que, sem dar conta, começa a normalizar o inaceitável.
“Sabes,” disse-me um dia, “eu já fui novo.
Também achei que o mundo era meu.
Também quis rasgar os mapas antigos e fazer tudo de novo.
E ainda bem.
Mas havia uma coisa que nos segurava: sabíamos o que era a dor dos outros.”
Fez-se silêncio.
Não daqueles vazios, mas dos cheios.
“Agora”, continuou, “há quem se ria dos direitos humanos.
Há quem ache que proteger os fracos é fraqueza.
Há quem queira voltar aos tempos em que ser diferente era crime e ter coração era um problema.”
A sua voz não tremia.
O corpo sim — mas só de frio.
“Por isso, decidi: vou dizer-lhes.
Sempre que estiver com os meus filhos, com os meus netos, com os filhos dos meus amigos.
Vou dizer-lhes que a liberdade não é um dado adquirido.
Que a civilização é feita de pequenos gestos.
E que há uma coisa que nos distingue das trevas: a capacidade de sentir o outro.”
Começou a escrever cartas.
Uma para cada neto.
Em folhas lisas, com a caneta que guardava desde o 25 de Abril.
Nelas, não falava de partidos nem de ideologias.
Falava de bondade.
De discernimento.
De não pactuar com o ódio mesmo quando este se disfarça de justiça.
De não repetir o erro de calar por vergonha.
Aos domingos, reunia a família.
Fazia arroz de pato, punha Amália a tocar baixinho, e no fim, pedia silêncio.
— Deixem-me contar-vos uma história.
E contava.
A de um vizinho que fora perseguido por ser comunista.
A de uma rapariga expulsa da escola por amar outra mulher.
A de um primo que desapareceu para “trabalhos forçados” e nunca mais voltou.
Contava como quem segura um ramo frágil, com a urgência de quem sabe que, se não se disser, esquece-se. E se se esquece, repete-se.
“É esta”, dizia, “a minha última tarefa. Ensinar-vos a ver. A não serem cúmplices por omissão. A fazerem perguntas. A distinguirem coragem de arrogância. Justiça de vingança. E pátria de fanatismo.”
Lembro-me de um neto mais novo que lhe perguntou se isso ainda interessava.
“Claro que interessa,” respondeu.
“O mal nunca desaparece. Muda de roupa.”
O Manel não falava com raiva.
Falava com tempo.
Como quem rega uma árvore mesmo sem saber se vai viver para ver o fruto.
Houve quem achasse exagero.
Quem dissesse que os tempos são outros, que agora já não há perigo.
Ele sorria.
E respondia:“É quando deixamos de ter medo que o perigo se instala. A indiferença é o combustível da barbárie.”
Um dia, levou um dos netos a ver a antiga livraria. Era agora uma loja de coisas baratas, cheia de luzes falsas e sons repetidos. Olhou para a montra e disse:
— Aqui vendia-se pensamento. Agora vende-se ruído.
Não era lamento. Era constatação.
Quando fez 84, pediu apenas uma coisa: que os netos lhe escrevessem uma carta.
Não mensagens.
Não vídeos.
Uma carta.
Com tempo, com erros, com papel.
Recebeu sete.
E guardou-as todas na mesma caixa onde ainda tem a primeira que escreveu à sua mulher, em 1959.
Hoje, o Manel já não está no banco do jardim.
A artrite ganhou-lhe os joelhos e a rua começou a doer-lhe mais do que os sapatos aguentam.
Mas as cartas continuam.
Agora, deixa-as na mesa da cozinha.
Às vezes, em cima de um livro.
Outras, dentro do pacote das bolachas preferidas de cada neto.
Uma delas, a que deixou na última visita da neta mais velha, dizia assim:
“Filha, não sejas nunca cúmplice de quem ri quando os outros choram. O que se levanta contra a dignidade humana nunca é solução — é doença. E a única herança que te quero deixar é esta: sê sempre mais humana do que o mundo te pedir. É esse o verdadeiro ato de coragem.”
Se isto for sermão, que o seja.
Mas parece-me antes um testamento.
Não o de quem deixa bens, mas o de quem reparte o que sabe — enquanto ainda pode.
E se me perguntarem quem foi o Manel, direi apenas isto: Foi um homem que, antes de partir, lembrou aos seus que viver é ver o outro.
E que o último ofício da vida é impedir que o mundo se esqueça disso.
AC




Infelizmente a sua preocupação é um facto, que sinto todos os dias cada vez mais. Tenho procurado alertar os meus 3 netos e até os pais, que, com formas de estar diferentes, parece viverem nesse mundo de ilusão. Mas tenho pouca esperança. De há uns anos a esta parte, resolvi só oferecer livros por datas de aniversários, na esperança de que algum dia os leiam. Apelidam-me de demasiadamente preocupado, só desejo que tenham razão. Acompanho muito mais o mais novo e tenho procurado levá-lo a ver tudo o que posso que lhe sirva para registar na memória e lhe desperte o pensamento. Há dias levei-o a ver uma exposição de fotografias em Almada de registos do 25 de Abril. A…
“ A indiferença é o combustível da barbárie “ , a frase que mais me marcou , na realidade a que me fez mais medo . De tão actual , de tão verdadeira . A indiferença mata , mas já não impressiona , porque “ os outros “ tornaram-se transparentes .
Chorei ao ler este texto. Obrigado.
Tive a sorte de ter um Manuel e um Eduardo, não iguais que ninguem o é , mas semelhantes ao senhor deste texto. Tocou-me profundamente. Sem empatia e conhecimento ( diferente de instrução) não há comunidade.