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Alberto Carvalho — Narrador para quem ainda escuta as palavras

O espaço de Alberto Carvalho, crónicas, contos e reflexões para quem lê devagar

O Último Bilhete

O Último Bilhete


Conheci a Ana num sábado cinzento, com a pressa de quem entra num comboio atrasado.


Eu vinha a correr da estação de Entrecampos, ela lia um livro encostada ao vidro, e só havia um lugar vago — ao lado dela.


Sentei-me sem pedir licença.


Ela não tirou os olhos do livro, mas percebi que notou a minha presença.


As mulheres reparam sempre.


Na altura, eu estava em Engenharia Informática, no segundo ano.


Ela estudava Belas-Artes, tinha tinta nos dedos e um caderno de esboços na mochila.


Tinha também aquele olhar de quem já viveu mais do que parece, e menos do que gostaria.


Falámos nesse dia, e depois nos seguintes.


O comboio passou a ser o nosso ponto de encontro, a estação, o pretexto.


Quando dei por mim, já me sentava sempre do lado esquerdo, junto à janela.


Para ela.


As coisas mais sérias começam assim: sem querer.


Namorámos três anos.


Três estações completas.


Com paragens, atrasos e mudanças de linha.


E um dia, sem aviso, acabou.


Fui eu quem disse: “Estamos a querer coisas diferentes.”


Ela respondeu: “Eu só queria que quisesses o mesmo.”


E saiu.


Não do comboio, mas da minha vida.


Não houve dramas.


Nem cenas.


Apenas silêncio.


Que é a forma mais cruel de se dizer adeus.


Durante anos, nunca a procurei.


E nunca me procurou.


Talvez por orgulho.


Ou medo.


Ou porque o tempo tem essa mania de fingir que resolve tudo.


Entretanto, casei.


Não com a Ana, claro.


Com a Sofia.


Tivemos um filho.


Depois divorciei-me.


Não por culpa dela.


Mas porque, às vezes, o que nos falta está tão fundo que nem o outro consegue alcançar.


Trabalhei, mudei de casa, envelheci.


Nada de especial.


Um homem comum com dias comuns.


Até que, numa manhã de abril, abri a caixa do correio e lá estava — um envelope sem remetente, com a minha letra num bilhete que eu já não lembrava ter escrito.


“Se um dia desaparecer, procura-me na linha de Sintra. Estarei no comboio das 18:10. Sempre fui pontual.”


Lembrei-me de tudo.


Da promessa.


Da frase dita a brincar no fim de uma discussão.


E de como ela respondeu: “Então um dia vou lá estar. Só para ver se cumpriste.”


Guardei o bilhete no bolso e não contei a ninguém.


Nem ao meu filho, nem à minha nova namorada, nem a mim próprio.


Porque há coisas que, se ditas, perdem a magia.


Nesse dia, saí mais cedo do trabalho.


Fui até à estação.


Sentei-me no banco onde costumava esperar por ela.


Os mesmos azulejos.


A mesma máquina de bilhetes. Mas tudo um pouco mais triste.


E então o comboio chegou.


18:10.


Entrei.


Percorri as carruagens como quem revê uma casa antiga.


Ninguém.


Não era ela.


Nem parecia haver sinal dela.


Sentei-me, mesmo assim.


Junto à janela.


Do lado esquerdo.


Como antes.


Talvez fosse só uma coincidência.


Talvez alguém me tivesse feito uma brincadeira.


Talvez a Ana nem lembrasse o que dissera.


Mas, antes da próxima estação, uma mulher entrou.


Cabelo mais curto, rosto mais marcado. Mas era ela.


Olhou-me.


Sorriu.


E disse apenas: “Estava à tua espera.”


Sentou-se.


Não falámos durante uns minutos.


Como se o silêncio tivesse voltado para nos proteger.


Como se aquele instante valesse mais que qualquer explicação.


Depois ela contou.


Que nunca deixou Lisboa.


Que também casou.


E também se separou.


Que deu aulas, escreveu um livro, mas nunca voltou a pintar.


“Perdi o jeito”, disse.


“Ou talvez tenha sido a vontade.”


Perguntei-lhe porque viera.


Ela respondeu: “Porque tu disseste que virias. E eu acreditei.”


Conversámos até ao fim da linha.


E depois voltámos.


Não sei se era amor.


Ou só saudade.


Mas havia ali qualquer coisa de inteiro.


Despedimo-nos na estação.


Troca de contactos.


Um abraço que demorou mais do que devia.


E um silêncio novo, feito não de dor, mas de promessa.


Ela entrou no metro.


Eu fui buscar o carro.


Desde esse dia, não nos tornámos um casal.


Mas trocámos mensagens.


Cafés.


Memórias.


E um dia, sem dizer nada, ela enviou-me uma fotografia: um quadro inacabado, com dois rostos num banco de estação.


E escreveu apenas: “Hoje voltei a pintar.”


Não sei se algum dia nos voltaremos a amar como antes.


Mas sei que, naquele comboio, algo se remendou.


Não o passado.


Mas o tempo.


O tempo que ficou por dizer.


E isso, por si só, já valeu tudo.


AC

Metro
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