O Último Bilhete
- Alberto Carvalho - Narrador

- 27 de jul.
- 3 min de leitura
O Último Bilhete
Conheci a Ana num sábado cinzento, com a pressa de quem entra num comboio atrasado.
Eu vinha a correr da estação de Entrecampos, ela lia um livro encostada ao vidro, e só havia um lugar vago — ao lado dela.
Sentei-me sem pedir licença.
Ela não tirou os olhos do livro, mas percebi que notou a minha presença.
As mulheres reparam sempre.
Na altura, eu estava em Engenharia Informática, no segundo ano.
Ela estudava Belas-Artes, tinha tinta nos dedos e um caderno de esboços na mochila.
Tinha também aquele olhar de quem já viveu mais do que parece, e menos do que gostaria.
Falámos nesse dia, e depois nos seguintes.
O comboio passou a ser o nosso ponto de encontro, a estação, o pretexto.
Quando dei por mim, já me sentava sempre do lado esquerdo, junto à janela.
Para ela.
As coisas mais sérias começam assim: sem querer.
Namorámos três anos.
Três estações completas.
Com paragens, atrasos e mudanças de linha.
E um dia, sem aviso, acabou.
Fui eu quem disse: “Estamos a querer coisas diferentes.”
Ela respondeu: “Eu só queria que quisesses o mesmo.”
E saiu.
Não do comboio, mas da minha vida.
Não houve dramas.
Nem cenas.
Apenas silêncio.
Que é a forma mais cruel de se dizer adeus.
Durante anos, nunca a procurei.
E nunca me procurou.
Talvez por orgulho.
Ou medo.
Ou porque o tempo tem essa mania de fingir que resolve tudo.
Entretanto, casei.
Não com a Ana, claro.
Com a Sofia.
Tivemos um filho.
Depois divorciei-me.
Não por culpa dela.
Mas porque, às vezes, o que nos falta está tão fundo que nem o outro consegue alcançar.
Trabalhei, mudei de casa, envelheci.
Nada de especial.
Um homem comum com dias comuns.
Até que, numa manhã de abril, abri a caixa do correio e lá estava — um envelope sem remetente, com a minha letra num bilhete que eu já não lembrava ter escrito.
“Se um dia desaparecer, procura-me na linha de Sintra. Estarei no comboio das 18:10. Sempre fui pontual.”
Lembrei-me de tudo.
Da promessa.
Da frase dita a brincar no fim de uma discussão.
E de como ela respondeu: “Então um dia vou lá estar. Só para ver se cumpriste.”
Guardei o bilhete no bolso e não contei a ninguém.
Nem ao meu filho, nem à minha nova namorada, nem a mim próprio.
Porque há coisas que, se ditas, perdem a magia.
Nesse dia, saí mais cedo do trabalho.
Fui até à estação.
Sentei-me no banco onde costumava esperar por ela.
Os mesmos azulejos.
A mesma máquina de bilhetes. Mas tudo um pouco mais triste.
E então o comboio chegou.
18:10.
Entrei.
Percorri as carruagens como quem revê uma casa antiga.
Ninguém.
Não era ela.
Nem parecia haver sinal dela.
Sentei-me, mesmo assim.
Junto à janela.
Do lado esquerdo.
Como antes.
Talvez fosse só uma coincidência.
Talvez alguém me tivesse feito uma brincadeira.
Talvez a Ana nem lembrasse o que dissera.
Mas, antes da próxima estação, uma mulher entrou.
Cabelo mais curto, rosto mais marcado. Mas era ela.
Olhou-me.
Sorriu.
E disse apenas: “Estava à tua espera.”
Sentou-se.
Não falámos durante uns minutos.
Como se o silêncio tivesse voltado para nos proteger.
Como se aquele instante valesse mais que qualquer explicação.
Depois ela contou.
Que nunca deixou Lisboa.
Que também casou.
E também se separou.
Que deu aulas, escreveu um livro, mas nunca voltou a pintar.
“Perdi o jeito”, disse.
“Ou talvez tenha sido a vontade.”
Perguntei-lhe porque viera.
Ela respondeu: “Porque tu disseste que virias. E eu acreditei.”
Conversámos até ao fim da linha.
E depois voltámos.
Não sei se era amor.
Ou só saudade.
Mas havia ali qualquer coisa de inteiro.
Despedimo-nos na estação.
Troca de contactos.
Um abraço que demorou mais do que devia.
E um silêncio novo, feito não de dor, mas de promessa.
Ela entrou no metro.
Eu fui buscar o carro.
Desde esse dia, não nos tornámos um casal.
Mas trocámos mensagens.
Cafés.
Memórias.
E um dia, sem dizer nada, ela enviou-me uma fotografia: um quadro inacabado, com dois rostos num banco de estação.
E escreveu apenas: “Hoje voltei a pintar.”
Não sei se algum dia nos voltaremos a amar como antes.
Mas sei que, naquele comboio, algo se remendou.
Não o passado.
Mas o tempo.
O tempo que ficou por dizer.
E isso, por si só, já valeu tudo.
AC




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