O Roubo Não Foi Só de Imagens
- Alberto Carvalho - Narrador

- 29 de jul.
- 2 min de leitura
O Roubo Não Foi Só de Imagens
Roubaram 72 mil imagens de uma aplicação usada por mulheres para encontros seguros.
Não foi um ataque a um servidor.
Foi um ataque a um território íntimo, onde cada fotografia era um gesto de confiança, uma tentativa de liberdade, um lugar onde o medo parecia — por fim — não entrar.
Mas entrou.
Como entra sempre.
Disfarçado de progresso, camuflado de neutralidade tecnológica, dissimulado sob a ideia de que "são só dados".
Não são.
São rostos.
São corpos.
São fragmentos de dignidade, organizados em retratos que as próprias escolheram partilhar — não com o mundo, mas com alguém.
A TEA App, criada para proteger mulheres de perfis falsos, de encontros tóxicos, de homens com cadastro, foi invadida.
E o que foi violado não foi apenas o código. Foi a promessa.
A ideia de que, em pleno século XXI, poderia haver um espaço onde uma mulher deixasse de estar vulnerável por simplesmente querer estar.
Mas não.
Mesmo ali, mesmo dentro de uma aplicação construída com a segurança como valor fundador, o assalto aconteceu.
E não foi inocente. Foi simbólico. Foi uma mensagem.
Uma daquelas mensagens que não se escrevem — apenas se sentem: “não importa o que faças, estás sempre exposta.”
Vivemos numa era em que a violência se sofisticou.
Já não se faz só com gritos, murros ou insultos. Faz-se com cliques. Com silêncios cúmplices. Com a capacidade de transformar um gesto íntimo num ficheiro partilhado. Com a crueldade passiva de quem acha que tudo é entretenimento — mesmo o pânico de alguém a imaginar a sua fotografia a circular fora de contexto, fora de escolha, fora de controlo.
E é sempre sobre elas.
Não porque o sistema digital seja machista — mas porque o mundo ainda é.
Porque a nudez de um homem é uma curiosidade.
E a de uma mulher, um escândalo.
Porque quando um perfil masculino é exposto, fala-se de cibercrime.
E quando é feminino, fala-se de "imprudência".
É este o ponto cego da nossa modernidade.
A ideia de que os direitos digitais são universais, quando na verdade têm género, classe, e geografia.
A ideia de que os dados são neutros, quando carregam dentro de si o medo de séculos.
A TEA App caiu.
Mas o que caiu com ela foi mais do que uma camada de segurança informática.
Caiu a ilusão de que bastava criar plataformas para proteger as mulheres.
Não basta.
Enquanto o mundo continuar a desculpar estas invasões com palavras como “vazamento”, “exposição”, ou “falha”, estaremos a repetir o velho padrão: o de chamar "incidente" à violência quando ela acontece sem sangue.
Este caso não é apenas uma notícia.
É um espelho.
E nesse espelho vê-se um corpo — o de uma mulher qualquer — apanhado entre o direito de existir e o risco de ser punida por isso.
Roubaram imagens.
Mas o que verdadeiramente se levou foi a sensação de poder confiar.
E isso, para quem vive cercado por séculos de desconfiança, é talvez o roubo mais antigo do mundo.
AC




“E quando é feminino é imprudência…”
Pois é, é um escândalo ainda😔
Gostei deste pedaço de texto:
"Porque a nudez de um homem é uma curiosidade.
E a de uma mulher, um escândalo.
Porque quando um perfil masculino é exposto, fala-se de cibercrime.
E quando é feminino, fala-se de "imprudência".
É este o ponto cego da nossa modernidade.
A ideia de que os direitos digitais são universais, quando na verdade têm género, classe, e geografia.
A ideia de que os dados são neutros, quando carregam dentro de si o medo de séculos".