Lisboa, cidade sem testemunhas
- Elian Morvane

- 22 de ago.
- 3 min de leitura
O Silêncio e a Cidade
Há cidades que nunca dormem, diz-se.
Mas o que nunca dorme não é a cidade; são as suas feridas.
As avenidas iluminadas, as fachadas de vidro, os candeeiros de ferro forjado – tudo repousa, tudo se cala no breu da madrugada.
O que não adormece é o rumor de uma solidão acumulada, como se cada janela encerrasse um coração em sobressalto.
Aprendi a escutar a cidade como quem encosta o ouvido a uma concha do mar: há um fundo de ondas que se repete, uma respiração invisível que atravessa os prédios e os corpos.
Quando a noite se adensa e o trânsito se rende ao cansaço, sobram os sons mínimos – um cão que ladra, o vidro de uma garrafa que cai, o arrastar dos passos de alguém que não encontra descanso.
É nesses instantes que o silêncio se revela, não como ausência, mas como uma presença mais funda, mais inquietante.
Sempre me intrigou esta contradição: quanto mais ruído produzimos, mais precisamos do silêncio.
Não do silêncio religioso, com claustros e vozes em surdina, mas de outro, mais feroz, que nos obriga a confrontar a nudez das nossas perguntas.
A cidade, com toda a sua pressa, parece feita para nos distrair desse encontro. Multiplica ecrãs, semáforos, anúncios, notificações.
Mas no intervalo entre um gesto e outro, quando baixamos a guarda, o silêncio regressa como quem cobra uma dívida.
Recordo-me de uma madrugada em Lisboa, na Praça do Comércio.
Não havia turistas, nem filas de elétricos, nem vozes a misturar línguas.
Apenas o rio, pesado e escuro, com a sua respiração milenar.
A lua inclinava-se sobre a água como se fosse um copo derramado.
Senti que a cidade inteira estava suspensa naquele instante, como se tivesse envelhecido de súbito.
E nesse vazio compreendi: as cidades são frágeis, apesar de toda a pedra, de toda a engenharia.
um silêncio prolongado para que se desfizessem em pó.
É por isso que muitos a temem.
O silêncio expõe.
O silêncio denuncia.
Quantas vezes um casal, à mesa, se confronta com a impossibilidade de falar, e é nesse mutismo que se revela a falência do amor?
Quantas vezes um político, interrompido, não suporta a pausa porque sabe que o vazio o desnuda mais do que qualquer acusação?
O silêncio é uma espécie de espelho, mas um espelho sem imagem: devolve-nos a nós próprios em estado cru.
E, no entanto, precisamos dele como de um chão firme.
Sem silêncio, a palavra torna-se espuma, perde densidade.
A poesia não existe sem o intervalo branco que a sustém.
A música não respira sem o compasso que separa as notas.
A amizade não sobrevive sem a possibilidade de estar junto e, simplesmente, calar.
Talvez seja este o maior paradoxo das cidades modernas: quanto mais crescem em altura, em largura, em tecnologia, menos espaço concedem ao silêncio.
Enchem-nos de barulho, mas não de presença.
Distribuem vozes gravadas, alarmes, notificações, mas não oferecem o tempo nu em que se escuta o próprio coração.
É como se tivéssemos medo de nos ouvir – e, no fundo, de nos conhecer.
Há dias em que percorro ruas apenas para procurar recantos onde o silêncio ainda resista.
Uma biblioteca quase vazia.
Um banco de jardim esquecido.
O interior de uma igreja abandonada, onde a luz entra pelas frestas como um salmo mudo.
E nesses lugares sinto que a cidade me devolve algo essencial: a possibilidade de ser inteiro.
Porque é no silêncio que se descobre a cidade invisível – aquela que não aparece em mapas, mas que pulsa sob o cimento.
A cidade feita de gestos pequenos: a mulher que leva pão ao vizinho idoso, o rapaz que dá passagem antes da pressa, a criança que se detém diante de um pardal.
Nenhum destes gestos faz ruído.
Mas todos são a argamassa que impede a cidade de ruir.
O silêncio, afinal, não é apenas ausência.
É linguagem.
Uma linguagem que a cidade tenta abafar mas que insiste em sobreviver.
Talvez por isso eu acredite que, quando o mundo se cansar do seu próprio tumulto, será no silêncio que reencontrará a esperança.
Elian Morvane




Reli o texto, mais uma vez obrigada.
“quando o mundo se cansar do seu próprio tumulto, será no silêncio que reencontrará a esperança.”