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Alberto Carvalho — Narrador para quem ainda escuta as palavras

O espaço de Alberto Carvalho, crónicas, contos e reflexões para quem lê devagar

O MUNDO ACABOU. AINDA BEM.

Atualizado: 20 de ago.


Não se assuste com o título.


Ele é apenas a forma mais sincera de começar.


O mundo acabou, sim.


Não ontem, não com uma guerra, não com uma pandemia, mas em silêncio.


Acabou aos poucos, enquanto olhávamos para ecrãs e fingíamos que estávamos vivos.


Acabou quando as palavras perderam peso, quando as notícias se tornaram ruído, quando a verdade e a mentira se tornaram gémeas siamesas, impossíveis de separar.


Mas há uma boa notícia escondida nisto: quando um mundo acaba, outro começa.


O fim de um mundo não é uma explosão, é um cansaço.


Uma espécie de exaustão coletiva que nos deixa vazios de sentido, como se a vida tivesse perdido a sua gravidade.


E, talvez, seja justamente nesse vazio que se pode recomeçar.


Porque só quando as coisas deixam de fazer sentido é que nos lembramos de perguntar o que é que, afinal, importa.


A pressa em que vivemos, esta corrida para nada, deixou-nos órfãos do silêncio.


Acreditámos que estar informados era o mesmo que estar lúcidos.


Acreditámos que partilhar frases soltas era o mesmo que pensar.


E, no entanto, nunca fomos tão desinformados, nunca pensamos tão pouco.


O mundo acabou quando deixámos de olhar verdadeiramente uns para os outros.


Quando reduzimos tudo a um “scroll” infinito.


Quando desistimos da lentidão.


Escrever isto é como soprar poeira de um espelho.


O que lhe queremos dizer não é novo, mas talvez seja urgente: é preciso parar.


Não por desistência, mas por resistência.


Parar para escutar o que o ruído tapa.


Parar para ler uma frase inteira sem olhar para o relógio.


Parar para sentir o desconforto de não ter nada para dizer.


Parar para que algo volte a nascer.


Este texto é a nossa primeira carta.


Não uma carta qualquer, mas uma carta para os que ainda lêem.


Para aqueles que não esperam fórmulas rápidas nem promessas fáceis.


Aqui não vamos oferecer respostas prontas, nem textos embalados para consumo imediato.


A nossa ambição é outra: oferecer algo que o obrigue a parar.


A sentir que a leitura é um ato íntimo, quase secreto, um pacto entre quem escreve e quem lê.


E talvez esteja a perguntar: por que razão o mundo acabou?


A resposta não cabe num parágrafo, nem num ensaio.


Mas podemos dizer-lhe o que vemos: um tempo que se contenta com frases de dez palavras, um espaço público saturado de ódio e sarcasmo, uma política que deixou de imaginar o futuro, uma cultura que já não se recorda do que é transcendente.


Vemos adultos exaustos a fingirem alegria, jovens perdidos a fingirem força, e uma solidão que já não é romântica, é apenas mecânica.


O mundo acabou porque nos tornámos espectadores do nosso próprio vazio.


Mas — e isto é o que importa — há algo de libertador nisto.


Quando uma casa cai, vemos o céu.


Quando um ruído cessa, ouvimos os pássaros.


Quando as palavras gastas morrem, podem nascer novas.


A ruína é também um lugar fértil.


É por isso que estamos aqui.


Não para erguer monumentos, mas para acender pequenas velas.


Não para anunciar soluções, mas para lembrar que há perguntas que valem mais do que qualquer resposta.


Se ficou até esta linha, então pertence a uma minoria.


A minoria dos que ainda acreditam que vale a pena demorar-se numa página, como quem se demora a olhar para um rio.


Este é o segundo texto da nossa newsletter, e talvez seja o único.


Não prometemos datas, não prometemos regularidade.


Só prometemos escrever quando tivermos algo que valha o seu tempo.


Se não formos capazes disso, não haverá texto nenhum.


Porque o que menos queremos é contribuir para o ruído.


Talvez tenha chegado aqui por acaso, talvez porque alguém lhe falou deste espaço, ou porque uma curiosidade antiga o trouxe.


Mas, agora que está aqui, pedimos-lhe apenas uma coisa: não leia com pressa.


Leia como quem escuta um amigo ao fim da tarde. Como quem abre uma carta que não esperava.


O mundo acabou — mas a vida não.


Há um outro mundo a começar, e talvez ele não esteja no futuro, mas nas pequenas coisas que decidimos não perder: um abraço demorado, uma ideia que se escreve devagar, uma palavra que não se vende.


Esse mundo começa quando deixamos de olhar para o que morreu e começamos a cuidar do que pode nascer.


Se ficou até ao fim, então já fez parte do nosso gesto: parou.


E, por isso, já valeu a pena escrever.


Até breve, quando houver algo que justifique este breve milagre que é partilhar palavras.


AC


Escultura em mármore de um rosto humano parcialmente desfeito, simbolizando a ruína silenciosa do mundo moderno e a permanência do essencial.
Rosto Esquecido de um Mundo Que Já Não Vê

11 comentários

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Ana Pedro
01 de set.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Escrevo, não para provar que li, mas porque li. Obrigada.

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Cacilda
13 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Que maravilha

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O Caderno
O Caderno
13 de ago.
Respondendo a

Ainda bem que o sentiu assim. Foi escrito para ser lido com esse espanto. Obrigado.

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Fernando André
10 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Desde que descobri, procuro seguir os artigos sempre que possível e sem pressa.

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O Caderno
O Caderno
13 de ago.
Respondendo a

Muito obrigado, Fernando André. Saber que acompanha os artigos com atenção e sem pressa é um grande incentivo para continuar a escrevê-los.

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Convidado:
10 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Gostei....sem pressa.

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O Caderno
O Caderno
13 de ago.
Respondendo a

Muito obrigado pelo seu comentário. Saber que leu e apreciou sem pressa é, por si só, um elogio ao texto e ao tempo que ele pede.

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Convidado:
10 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Triste....mas necessario dizer...

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O Caderno
O Caderno
13 de ago.
Respondendo a

Muito obrigado pelo seu comentário. Há verdades que carregam tristeza, mas que precisam de ser ditas para que alguma coisa possa mudar.

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