top of page
  • Ver página da Literatura Secreta no Facebook

Alberto Carvalho — Narrador para quem ainda escuta as palavras

O espaço de Alberto Carvalho, crónicas, contos e reflexões para quem lê devagar

Portugal reconhece o Estado da Palestina — coragem, consequências e a medida da nossa decência

Atualizado: 10 de nov.

Portugal reconhece o Estado da Palestina — coragem, consequências e a medida da nossa decência.


Londres/Nova Iorque/Lisboa, 21 de setembro de 2025. 


Não foi apenas um gesto protocolar: Portugal reconheceu oficialmente o Estado da Palestina.


O anúncio, feito por Paulo Rangel, na Missão Permanente junto das Nações Unidas, colocou-nos, finalmente, do lado da coerência — a mesma que juramos sempre que falamos de direitos humanos, direito internacional e solução de dois Estados.


Um país que pronuncia “paz” sem sussurros


Há momentos em que a política externa revela a espinha dorsal de um país.


Hoje foi um desses momentos.


Portugal deu nome a uma evidência moral e jurídica: não haverá paz duradoura se não houver dois Estados, vivos, viáveis, reconhecidos.


Ao fazê-lo em coordenação com aliados que até ontem hesitavam — Reino Unido, Canadá e Austrália — o Governo português evitou a solidão diplomática e reforçou o efeito de alavanca desta decisão.


Não romantizemos: reconhecer não é resolver.


Mas é romper com a indecisão, com o cálculo que eterniza tragédias e com a confortável neutralidade que, tantas vezes, funciona como cumplicidade.


A gramática da coerência


Reconhecer é também prometer coerência.


O ministro sublinhou o óbvio: condenação do Hamas, libertação de todos os reféns, rejeição da sua tutela sobre Gaza, defesa da cessação imediata das hostilidades e denúncia do horror humanitário.


Reafirmou, ainda, o caráter ilegal da expansão de colonatos na Cisjordânia — a ferida que rasga qualquer mapa de paz. Esta linguagem conta. E compromete.


Quando governos amigos avançam no mesmo sentido — e quando o Reino Unido altera décadas de prática —, percebe-se que não se trata de capricho. Trata-se de uma viragem de paradigma face à continuação da guerra em Gaza e à política de colonatos, inclusive na área sensível do corredor E1, que ameaça transformar o “Estado palestiniano” numa palavra sem território.


Memória portuguesa: de Timor à Palestina


Portugal tem memória longa.


A nossa Constituição inscreveu, depois de 1974, uma ideia clara de paz e autodeterminação.


Foi com essa bússola que insistimos por Timor-Leste quando poucos queriam ouvir.


Não fomos perfeitos, mas fomos persistentes.


Essa persistência é agora exigida para que o reconhecimento não fique em moldura: tem de se traduzir em política pública, diplomacia ativa e ajuda concreta.


O ónus de quem reconhece: 10 tarefas para já


  1. Diplomacia consequente na UE e na ONU. Portugal deve trabalhar com Madrid, Dublin e Oslo, que, em 2024, já tinham normalizado este passo, para um bloco europeu coerente sobre cessar-fogo, fronteiras, colonatos e garantias de segurança.

  2. Apoio humanitário vinculante. Reforçar contribuições a agências reconhecidas e organizações com provas dadas no terreno, com mecanismos de auditoria públicos.

  3. Programa de vistos humanitários e bolsas. Crianças e estudantes palestinianos precisam de corredores seguros para tratamento clínico e continuidade académica; é possível fazê-lo sem improvisos, com metas verificáveis.

  4. Revisão de licenças de exportação de material de defesa. Congelar tudo o que possa, direta ou indiretamente, alimentar violações de direito internacional humanitário — por qualquer das partes.

  5. Sanções direcionadas a quem promove colonatos ilegais. Medidas pontuais, graduais, com avaliação técnica e coordenação europeia, centradas em atores e entidades que lucram com a ilegalidade.

  6. Apoio a reformas na Autoridade Palestiniana. Sem instituições que funcionem, a palavra “Estado” perde substância. Reformar, profissionalizar e responsabilizar é condição, não adereço.

  7. Defesa do direito internacional. Apoiar ativamente os tribunais internacionais quando investigam crimes graves, sem exceções de conveniência.

  8. Canais de diálogo com Israel. Segurança de Israel e dignidade palestiniana não são termos contraditórios; são condições mútuas. Reconhecer a Palestina não é negar Israel.

  9. Missão técnica portuguesa para reconstrução essencial. Água, energia, escolas e hospitais: onde a nossa engenharia, saúde e ensino superior podem acrescentar valor com parceiros locais.

  10. Diplomacia cultural e académica. Redes entre universidades portuguesas e palestinianas, residências artísticas e projetos de língua portuguesa podem abrir janelas onde as paredes parecem definitivas.


As crianças no centro


Quem são os sujeitos do reconhecimento?


Não apenas líderes e chancelarias — são sobretudo as crianças que aprenderam a desenhar sob bombardeamentos e as que vivem com medo de sirenes; as de Gaza e as do sul de Israel; as que perderam a casa, a escola, os amigos.


A política externa que ignora esta realidade transforma-se em geometria sem vida.


O reconhecimento, por si só, não lhes devolve o tempo roubado; mas pode encurtar a distância entre o que dizemos e o que fazemos por elas. (As decisões de hoje foram justificadas, entre outros motivos, pelo agravamento humanitário e pela estagnação do processo de paz).


Riscos reais, mas proporcionais


Haverá reações duras — diplomáticas, comerciais, retóricas.


Israel já tem contestado movimentos análogos feitos por outros países europeus; governos que hoje avançam — Reino Unido, Canadá, Austrália — assumem esse custo em nome de uma ideia simples: quando o processo de paz se esgota, é preciso reabrir o mapa com decisões políticas. Portugal não está sozinho nessa leitura.


Mas os riscos não diminuem a legitimidade do passo.


Pelo contrário: testam-no.


A política é feita de escolhas visíveis. Este é um desses dias em que um país se vê ao espelho.


O que muda, afinal?


Muda a posição de partida quando Portugal falar de Gaza, de colonatos, de justiça e de segurança. Muda o peso da nossa voz quando apelarmos a cessar-fogo, à libertação de reféns, ao fim dos lançamentos de rockets, ao fim das incursões que devastam comunidades inteiras. Muda a expectativa sobre nós próprios: quem reconhece não pode pactuar com ambiguidades.


Muda também a arquitetura internacional.


O gesto de hoje segue uma linha crescente, iniciada por países europeus em 2024 — Espanha, Irlanda e Noruega — e reforçada agora por aliados centrais. Não é um fim; é a reabertura das possibilidades.


Um país é o que faz com o que diz


Reconhecer a Palestina não é um troféu moral. É um contrato. Exige transparência, escrutínio, relatórios públicos de execução das promessas que hoje se enunciaram. Exige que a oposição parlamentar critique com seriedade, que a sociedade civil exija resultados, que a comunicação social acompanhe com rigor — sem cinismo, sem propaganda.


E exige, sobretudo, proximidade humana.


Quem esteve em campos de refugiados sabe que a palavra “Estado” vale tanto quanto a próxima refeição, a próxima aula, a próxima consulta.


A política externa começa, muitas vezes, no gesto concreto de garantir que um laboratório funciona, que uma escola reabre, que um trauma é tratado com dignidade.


Final: um dia para estar à altura


Hoje Portugal pronunciou “Palestina” com a boca inteira.


Agora precisa de conjugar o verbo: amparar, reconstruir, negociar, insistir, proteger.


Não se trata de escolher um lado da história; trata-se de escolher o lado do futuro.


Um futuro onde duas bandeiras cabem no mesmo horizonte e onde uma criança pode aprender a escrever o seu nome sem medo.


Se esse futuro é possível? Não sei.


Sei apenas que os países que o tornam menos impossível são os que dizem e, depois, fazem.



Duas mãos simbolizam o reconhecimento de Portugal ao Estado da Palestina e o compromisso com a paz e a solução de dois Estados.
Um gesto histórico que só fará sentido se for seguido de política, ajuda e coerência

4 comentários

Avaliado com 0 de 5 estrelas.
Ainda sem avaliações

Adicione uma avaliação
Albertina Vaz
20 de out.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Reconheceu. Com atraso mas reconheceu. Mas o que vai ser Gaza, ou melhor, que vai construir Trump numa terra que ajudou a destruir? Os palestinianos viviam na Palestina. Hoje vivem onde? Ou querem continuar o genocidio?


Curtir

Maria José Escolástico Alves
22 de set.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Excelente análise. Não é um processo fácil, mas está dado o primeiro passo. Timido ainda, mas é um passo, e isso é de valorizar. "Paz na terra aos homens de boa vontade"

Curtir

mafvaz
22 de set.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Uma análise excelente sobre o mundo que construimos e em que vivemos. Será preciso que todos façamos muito mais para que a humanidade não seja apenas uma palavra. Obrigado, Alberto Carvalho pelas suas palavras que nao perco nunca. São um alerta para o que ainda está para vir. Oxalá os nossos filhos e netos saibam perservar o valor da liberdade de todos os povos do mundo.

Curtir

Convidado:
21 de set.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Excelente ensaio. Parabéns!

Curtir
bottom of page