Portugal reconhece o Estado da Palestina — coragem, consequências e a medida da nossa decência
- Alberto Carvalho - Narrador

- 21 de set.
- 5 min de leitura
Atualizado: 10 de nov.
Portugal reconhece o Estado da Palestina — coragem, consequências e a medida da nossa decência.
Londres/Nova Iorque/Lisboa, 21 de setembro de 2025.
Não foi apenas um gesto protocolar: Portugal reconheceu oficialmente o Estado da Palestina.
O anúncio, feito por Paulo Rangel, na Missão Permanente junto das Nações Unidas, colocou-nos, finalmente, do lado da coerência — a mesma que juramos sempre que falamos de direitos humanos, direito internacional e solução de dois Estados.
Um país que pronuncia “paz” sem sussurros
Há momentos em que a política externa revela a espinha dorsal de um país.
Hoje foi um desses momentos.
Portugal deu nome a uma evidência moral e jurídica: não haverá paz duradoura se não houver dois Estados, vivos, viáveis, reconhecidos.
Ao fazê-lo em coordenação com aliados que até ontem hesitavam — Reino Unido, Canadá e Austrália — o Governo português evitou a solidão diplomática e reforçou o efeito de alavanca desta decisão.
Não romantizemos: reconhecer não é resolver.
Mas é romper com a indecisão, com o cálculo que eterniza tragédias e com a confortável neutralidade que, tantas vezes, funciona como cumplicidade.
A gramática da coerência
Reconhecer é também prometer coerência.
O ministro sublinhou o óbvio: condenação do Hamas, libertação de todos os reféns, rejeição da sua tutela sobre Gaza, defesa da cessação imediata das hostilidades e denúncia do horror humanitário.
Reafirmou, ainda, o caráter ilegal da expansão de colonatos na Cisjordânia — a ferida que rasga qualquer mapa de paz. Esta linguagem conta. E compromete.
Quando governos amigos avançam no mesmo sentido — e quando o Reino Unido altera décadas de prática —, percebe-se que não se trata de capricho. Trata-se de uma viragem de paradigma face à continuação da guerra em Gaza e à política de colonatos, inclusive na área sensível do corredor E1, que ameaça transformar o “Estado palestiniano” numa palavra sem território.
Memória portuguesa: de Timor à Palestina
Portugal tem memória longa.
A nossa Constituição inscreveu, depois de 1974, uma ideia clara de paz e autodeterminação.
Foi com essa bússola que insistimos por Timor-Leste quando poucos queriam ouvir.
Não fomos perfeitos, mas fomos persistentes.
Essa persistência é agora exigida para que o reconhecimento não fique em moldura: tem de se traduzir em política pública, diplomacia ativa e ajuda concreta.
O ónus de quem reconhece: 10 tarefas para já
Diplomacia consequente na UE e na ONU. Portugal deve trabalhar com Madrid, Dublin e Oslo, que, em 2024, já tinham normalizado este passo, para um bloco europeu coerente sobre cessar-fogo, fronteiras, colonatos e garantias de segurança.
Apoio humanitário vinculante. Reforçar contribuições a agências reconhecidas e organizações com provas dadas no terreno, com mecanismos de auditoria públicos.
Programa de vistos humanitários e bolsas. Crianças e estudantes palestinianos precisam de corredores seguros para tratamento clínico e continuidade académica; é possível fazê-lo sem improvisos, com metas verificáveis.
Revisão de licenças de exportação de material de defesa. Congelar tudo o que possa, direta ou indiretamente, alimentar violações de direito internacional humanitário — por qualquer das partes.
Sanções direcionadas a quem promove colonatos ilegais. Medidas pontuais, graduais, com avaliação técnica e coordenação europeia, centradas em atores e entidades que lucram com a ilegalidade.
Apoio a reformas na Autoridade Palestiniana. Sem instituições que funcionem, a palavra “Estado” perde substância. Reformar, profissionalizar e responsabilizar é condição, não adereço.
Defesa do direito internacional. Apoiar ativamente os tribunais internacionais quando investigam crimes graves, sem exceções de conveniência.
Canais de diálogo com Israel. Segurança de Israel e dignidade palestiniana não são termos contraditórios; são condições mútuas. Reconhecer a Palestina não é negar Israel.
Missão técnica portuguesa para reconstrução essencial. Água, energia, escolas e hospitais: onde a nossa engenharia, saúde e ensino superior podem acrescentar valor com parceiros locais.
Diplomacia cultural e académica. Redes entre universidades portuguesas e palestinianas, residências artísticas e projetos de língua portuguesa podem abrir janelas onde as paredes parecem definitivas.
As crianças no centro
Quem são os sujeitos do reconhecimento?
Não apenas líderes e chancelarias — são sobretudo as crianças que aprenderam a desenhar sob bombardeamentos e as que vivem com medo de sirenes; as de Gaza e as do sul de Israel; as que perderam a casa, a escola, os amigos.
A política externa que ignora esta realidade transforma-se em geometria sem vida.
O reconhecimento, por si só, não lhes devolve o tempo roubado; mas pode encurtar a distância entre o que dizemos e o que fazemos por elas. (As decisões de hoje foram justificadas, entre outros motivos, pelo agravamento humanitário e pela estagnação do processo de paz).
Riscos reais, mas proporcionais
Haverá reações duras — diplomáticas, comerciais, retóricas.
Israel já tem contestado movimentos análogos feitos por outros países europeus; governos que hoje avançam — Reino Unido, Canadá, Austrália — assumem esse custo em nome de uma ideia simples: quando o processo de paz se esgota, é preciso reabrir o mapa com decisões políticas. Portugal não está sozinho nessa leitura.
Mas os riscos não diminuem a legitimidade do passo.
Pelo contrário: testam-no.
A política é feita de escolhas visíveis. Este é um desses dias em que um país se vê ao espelho.
O que muda, afinal?
Muda a posição de partida quando Portugal falar de Gaza, de colonatos, de justiça e de segurança. Muda o peso da nossa voz quando apelarmos a cessar-fogo, à libertação de reféns, ao fim dos lançamentos de rockets, ao fim das incursões que devastam comunidades inteiras. Muda a expectativa sobre nós próprios: quem reconhece não pode pactuar com ambiguidades.
Muda também a arquitetura internacional.
O gesto de hoje segue uma linha crescente, iniciada por países europeus em 2024 — Espanha, Irlanda e Noruega — e reforçada agora por aliados centrais. Não é um fim; é a reabertura das possibilidades.
Um país é o que faz com o que diz
Reconhecer a Palestina não é um troféu moral. É um contrato. Exige transparência, escrutínio, relatórios públicos de execução das promessas que hoje se enunciaram. Exige que a oposição parlamentar critique com seriedade, que a sociedade civil exija resultados, que a comunicação social acompanhe com rigor — sem cinismo, sem propaganda.
E exige, sobretudo, proximidade humana.
Quem esteve em campos de refugiados sabe que a palavra “Estado” vale tanto quanto a próxima refeição, a próxima aula, a próxima consulta.
A política externa começa, muitas vezes, no gesto concreto de garantir que um laboratório funciona, que uma escola reabre, que um trauma é tratado com dignidade.
Final: um dia para estar à altura
Hoje Portugal pronunciou “Palestina” com a boca inteira.
Agora precisa de conjugar o verbo: amparar, reconstruir, negociar, insistir, proteger.
Não se trata de escolher um lado da história; trata-se de escolher o lado do futuro.
Um futuro onde duas bandeiras cabem no mesmo horizonte e onde uma criança pode aprender a escrever o seu nome sem medo.
Se esse futuro é possível? Não sei.
Sei apenas que os países que o tornam menos impossível são os que dizem e, depois, fazem.




Reconheceu. Com atraso mas reconheceu. Mas o que vai ser Gaza, ou melhor, que vai construir Trump numa terra que ajudou a destruir? Os palestinianos viviam na Palestina. Hoje vivem onde? Ou querem continuar o genocidio?
Excelente análise. Não é um processo fácil, mas está dado o primeiro passo. Timido ainda, mas é um passo, e isso é de valorizar. "Paz na terra aos homens de boa vontade"
Uma análise excelente sobre o mundo que construimos e em que vivemos. Será preciso que todos façamos muito mais para que a humanidade não seja apenas uma palavra. Obrigado, Alberto Carvalho pelas suas palavras que nao perco nunca. São um alerta para o que ainda está para vir. Oxalá os nossos filhos e netos saibam perservar o valor da liberdade de todos os povos do mundo.
Excelente ensaio. Parabéns!