O Coração à Esquerda
- Alberto Carvalho - Narrador

- 27 de jul.
- 4 min de leitura
A Última Carta
Disseram-me que ela nunca saía de casa.
Que vivia entre os livros, a varanda e um candeeiro gasto que acendia à mesma hora, como se o mundo inteiro fosse pontual.
Chamava-se Laura, e eu só a conhecia de nome — ou melhor, do som do nome, que o carteiro dizia em voz baixa, como quem se desculpa por ter de entregar mais uma carta sem resposta.
O meu trabalho, à época, era simples: substituir o meu amigo no giro da aldeia enquanto ele recuperava da operação.
Eu tinha vinte e três anos, estudava Letras na capital, e achava que o mundo era um lugar por inventar.
A aldeia não.
A aldeia era por descobrir.
Laura morava no fim da rua mais íngreme, aquela que todos evitavam.
Havia uma trepadeira que lhe cobria a porta, e o trinco tinha um som tão antigo que parecia chorar cada vez que alguém o puxava.
A primeira carta que lhe deixei vinha da Suíça.
A segunda, de Leiria.
A terceira, não trazia remetente — apenas a palavra “Desculpa” escrita nas costas do envelope.
Ela nunca abriu a porta.
Mas na quarta semana, quando cheguei ao portão, encontrei um ramo de alecrim pendurado no batente.
E um bilhete: “Para o carteiro que não desiste.”
Sorri, meio sem jeito.
Guardei o ramo no bolso e deixei o correio.
Passei a reparar mais nas cartas que lhe vinham.
Algumas estavam escritas à mão, com letra inclinada.
Outras eram cartões de datas passadas.
E outras ainda vinham vazias — apenas o envelope, sem papel, como se o silêncio fosse suficiente.
A aldeia falava pouco da Laura.
Diziam que tivera um desgosto de amor, mas nunca diziam qual.
“Foi há muito tempo”, murmuravam, como se o tempo apagasse as dores ou as tornasse menos incómodas de recordar.
Um dia, depois de lhe deixar o correio, reparei que a porta estava entreaberta.
Esperei.
Ninguém veio.
Bati com os dedos — uma, duas vezes.
E ouvi passos.
Passos curtos, suaves.
Ela apareceu na sombra da ombreira, com um xaile nos ombros e um rosto que já vira muita luz.
Os olhos eram verdes, mas baços.
Como vidro antigo.
— Olá — disse eu, num gesto quase infantil.
— Obrigada — disse ela.
Foi tudo.
Na semana seguinte, deixou-me uma carta.
Era para mim.
Dizia apenas: “Gosto de quem trata bem o tempo.”
E eu voltei a sorrir, como quem escuta uma coisa rara.
Começámos assim.
Eu deixava-lhe cartas sem selo, e ela respondia com frases curtas.
Era uma troca muda, mas certa.
Eu escrevia sobre Lisboa, sobre os poemas de Eugénio, sobre o medo de não ser nada de útil.
Ela escrevia sobre o cheiro do forno ao domingo, sobre um amor de infância, sobre como as palavras às vezes doem mais quando são sinceras.
Um dia, ela escreveu-me isto: “Ele partiu num dia igual a este. E não me disse adeus. O amor que sentimos não se gastou — apenas não se soube como ficar.”
Aquilo ficou-me preso.
Como um nó no estômago.
No final do verão, eu teria de voltar a Lisboa.
Escrevi-lhe, a medo: “Se quiser, posso visitá-la antes de partir.”
Esperei dias.
Nada.
Quando já julgava que me calara para sempre, encontrei um envelope com um laço encarnado.
Dentro, havia uma carta mais longa que as outras.
Dizia: “Não sou quem pensa que sou. Fui muitas coisas. Amada, traída, esquecida, lembrada. Tive um homem que me prometeu a eternidade e outro que me deu uma tarde inteira de silêncio — que valeu mais. Chorei de raiva e de ternura. Fui filha, fui professora, fui nada. E agora sou esta mulher que só sabe agradecer o bem que lhe fazem. Não venha. Guarde-me assim, nas palavras. É mais justo. As visitas terminam. As cartas não.”
Chorei.
Não me envergonho.
Chorei no caminho, junto ao muro velho da escola, com o alecrim ainda seco dentro da carteira.
Voltei a Lisboa.
Continuei a estudar.
Escrevi menos.
Vivi mais.
Mas nunca deixei de me lembrar da Laura.
Três anos depois, recebi um telefonema.
O novo carteiro da aldeia, que era primo do meu pai, encontrou uma caixa com o meu nome.
Estava na casa dela.
Tinham-na levado, já muito fraca, para o hospital.
Morreu no dia seguinte.
A caixa tinha cartas.
Todas as que eu lhe tinha deixado.
E mais outras, que nunca lera — todas para um homem chamado João.
Eram cartas de amor, cheias de esperança, de dor, de espera.
Algumas tinham quase trinta anos.
Outras eram quase recentes.
Mas todas falavam dele.
Na última, escrita pouco antes da sua morte, dizia apenas: “João, Amei-te como se ama quem nos esquece. Amei-te apesar da tua ausência. Mas nunca deixei que isso fosse a minha única história. Agora tenho outra. Tive um carteiro que me escutou. E, pela primeira vez, soube o que era ser lida.”
Nunca soube quem era João.
Mas sei quem foi Laura.
E quando hoje me perguntam porque gosto tanto de escrever cartas, digo apenas isto: porque há palavras que chegam onde os passos não chegam.
Porque há silêncios que só o papel entende.
E porque há amores que não acabam — transformam-se em histórias.
— Uma história guardada por este Narrador Criativo
(Portugal, maio de 2024)




Mais uma vez fiquei presa à sua escrita até ao fim. A solidão mata. Obrigada pelas suas palavras que nos fazem companhia
Também sei o que é a solidão e estar só. São sentimentos diferentes mas que se entrelaçam. Adorei este seu conto. Gosto da forma como escreve e do que escreve. Obrigada por fazer parte do meu dia. Agradeco
Adorei!Cartas de Amor,cartas que ficam no tempo,no coração na memória!
"Apenas não se soube como ficar.”
E o tanto que perdemos por não o saber e não tentarmos descobrir?
A minha sobrinha, jovem adulta, sugeria-me que, pelo aniversário de uma amiga, lhe escrevesse uma carta. É tão reconfortante recebermos palavras escritas, que podemos guardar e voltar a usar.