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Alberto Carvalho — Narrador para quem ainda escuta as palavras

O espaço de Alberto Carvalho, crónicas, contos e reflexões para quem lê devagar

A Desconfiança de Peito Fechado

A Desconfiança de Peito Fechado


Há argumentos que não nascem da razão — nascem do ressentimento.


E quando se fala de amamentação, os que pedem "limites" raramente querem proteger os bebés ou ajudar as mães.


Querem, isso sim, proteger a ordem das coisas tal como ela é: desigual, desconfortável, masculina e hierárquica.


Manuel Lemos, figura conhecida da saúde e da política social, acaba de dizer que há “abusos” no direito à amamentação e que, por isso, é preciso “definir limites”.


Não apresenta números, nem estudos, nem experiências clínicas.


Apresenta uma opinião — e ergue-a como doutrina.


Fala como quem já viu de tudo e, por isso, já não acredita em nada. Nem no leite que alimenta, nem nas mães que o oferecem.


É sempre assim: quando uma mulher amamenta em público, incomoda.


Quando o faz no trabalho, atrapalha.


Quando exige condições para continuar a fazê-lo, abusa. O que se exige dela, em silêncio, é que o faça às escondidas.


Sem pedir nada. Sem faltar. Sem mostrar.


Essa desconfiança de peito fechado — fria, moralista, paternalista — revela muito mais do que as palavras ditas. Revela a dificuldade que uma certa elite tem em compreender o que não viveu.


Ou o que não quer ver.


Fala-se de amamentação como se fosse um luxo.


Um privilégio a que algumas se agarram para não trabalhar. E não como o que é: um gesto primário de nutrição, vínculo e amor.


A ideia de que há mulheres a fingir que amamentam para ganhar tempo ou subsídio é repugnante — não apenas por ser falsa, mas por ser politicamente venenosa.


Cria o retrato de uma mulher oportunista, manipuladora, sem ética.


E prepara o terreno para uma coisa ainda mais grave: a criminalização da maternidade.


Se há quem abuse do sistema, que se investigue.


Mas que não se acuse todas para justificar um ataque legislativo.


Não se reforma a lei com base no boato, nem se escreve política pública com medo de fantasmas.


O que se esperaria de um responsável com cargos públicos — e com memória histórica — era outra atitude: proteger os mais frágeis, garantir direitos, promover a confiança.


Mas não: prefere-se a suspeita.


Prefere-se lançar a ideia de que as mulheres devem ser controladas, vigiadas, limitadas — sobretudo se quiserem cuidar dos seus filhos.


Talvez se tenha esquecido que o verdadeiro abuso é outro.


É usar uma tribuna para fazer política contra quem cuida.


É lançar suspeitas públicas sem provas.


É reduzir um gesto humano a uma fraude potencial.


E se há limites a definir, comecemos por este: que se diga, com clareza, que a maternidade não é um problema — é um direito.


E que os homens que nunca amamentaram não venham ensinar as mulheres a fazê-lo.


AC


Biberão vazio sobre uma secretária, com papéis e carimbo ao fundo — símbolo da burocracia sobre a maternidade.
Biberão vazio sobre uma secretária, com papéis e carimbo ao fundo — símbolo da burocracia sobre a maternidade.

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