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Alberto Carvalho — Narrador para quem ainda escuta as palavras

O espaço de Alberto Carvalho, crónicas, contos e reflexões para quem lê devagar

As Estações do João

A Última Noite no Café do Fim


Diziam que o Café do Fim só abria à noite.


E mesmo assim, só em certas noites.


Ninguém sabia bem onde ficava — apenas que não ficava sempre no mesmo lugar.


Às vezes era numa rua de Lisboa, junto a uma livraria fechada.


Outras, num beco do Porto, entre dois candeeiros apagados.


E havia quem jurasse tê-lo encontrado numa aldeia onde nunca tinha estado antes.


Mas todos diziam o mesmo:— Entras e parece que te conhecem.


— Como assim?— Como se já tivesses estado lá.


Mesmo que seja a primeira vez.


João tinha vinte e dois anos e estava cansado de tudo.


Da faculdade, da cidade, das conversas rápidas, das pessoas que o ouviam com um olho no telemóvel.


E nessa noite, saiu de casa sem destino, como quem sai à procura de alguma coisa — mesmo sem saber o quê.


Foi então que viu a luz.


Fraca.


Quente.


Vinha de uma porta estreita, entre dois prédios abandonados.


No vidro, uma inscrição a giz: CAFÉ DO FIM Aberto só quando é preciso.


Entrou.


O sino da porta não tocou.


Mas alguém levantou os olhos.


Era uma mulher com cabelo grisalho e voz doce.— Boa noite, João. Chegaste.


Ele não perguntou como ela sabia o nome.


Nem por que parecia que já a conhecia.


Sentou-se.


Pediu um café.


Ela serviu-lhe chá.


— Aqui servimos o que falta — disse ela. — E hoje o que lhe falta é tempo.


Na mesa ao lado, um rapaz lia um livro que João não conseguia ver bem.


Noutra mesa, uma senhora escrevia postais a ninguém.


E junto à janela, uma criança dormia com um urso na mão, como se aquele lugar fosse casa.


Havia silêncio.


Mas não o silêncio pesado das esperas.


Era um silêncio que abraçava.


Que deixava respirar.


— As pessoas vêm cá antes das decisões — disse a mulher.


— Antes dos fins e dos começos.


— E se não souber que decisão tomar? — perguntou João.


Ela sorriu.


— Então ouça o que não disse ainda.


E beba devagar.


O chá sabia a infância.


A verões longos.


A alguém que partiu e deixou um bilhete escondido num livro.


João olhou à volta e sentiu vontade de escrever.


Não um texto para um exame, nem um post de Instagram.


Mas uma carta.


A alguém.


Talvez a si mesmo.


Escreveu.


Escreveu até a chávena ficar vazia.


Escreveu o que nunca tinha dito.


O medo de falhar.


A vontade de desistir.


O amor que não soube mostrar.


O abraço que nunca deu ao avô.


O que nunca disse à irmã.


O que ainda quer fazer antes de esquecer quem é.


Quando acabou, a mulher voltou à mesa.— Já escreveu?


Ele acenou que sim.— Então pode ir.


Levantou-se.


Olhou para trás.


Quis perguntar se podia voltar.


Mas ela respondeu antes de ele abrir a boca:— O Café do Fim só aparece a quem já está a caminho.


Saiu.


E nesse instante, o prédio onde estava desapareceu.


O beco estava vazio.


Mas no bolso, havia um papel dobrado com a letra dele.


A carta que escreveu e que, sem saber, precisava de ser lida.


AC

Rapaz jovem sentado num banco de estação de comboios, ao entardecer, com mochila aos pés e olhar voltado para longe.

2 comentários

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Convidado:
28 de jul.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Gostei muito do que escreveu, como diz e pergunta um pouco de mim também está aí.

Gratidão 🙏 🙏 🙏 ❤️

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O Caderno
O Caderno
29 de jul.
Respondendo a

Fico profundamente grato pelas suas palavras. Que um pouco de si tenha ficado no que leu — isso é talvez o mais bonito que pode acontecer entre quem escreve e quem escuta com o coração. Obrigado pela leitura generosa. 🌿

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