Manual para Começar a Escrever
- Aurelian Draven

- 22 de ago.
- 6 min de leitura
Manual para começar (quando ninguém está a ver)
Há uma hora da cidade em que o barulho ainda não acordou para o turno.
Não é madrugada de poetas; é o intervalo técnico entre o camião do lixo e o primeiro autocarro. Gosto de começar aí.
A rua parece desarrumada como um quarto depois da pressa, e a cabeça, se não lhe dermos conversa, aceita finalmente ouvir. Começar é quase sempre isto: escolher um silêncio que não se oferece.
Aprendi cedo que ninguém nos dá autorização para escrever. Nem escola, nem prémio, nem selfie com lombada ao fundo. Se esperas aplauso para te sentares, não te sentas. Se esperas tempo, não começas nunca. O tempo livre é um boato. O que existe são minutos resgatados àquilo que te empurra: notificações, urgências falsificadas, o medo de falhar. O começo é uma espécie de contrabando: retiras ao dia um pedaço que era suposto não teres.
Quando me perguntam “por onde é que se começa?”, gostava de responder com uma técnica impecável. Mas a verdade é mais caseira. Começa-se por olhar. Não o olhar artístico, cheio de intenção e filtro; o olhar simples que reconhece histórias naquilo que não tem legenda.
A senhora do quinto que apanha roupa às sete porque desconfia da chuva. O rapaz da bomba de gasolina que coloca sempre o bico do lado esquerdo, como se houvesse um ritual invisível para não entornar o dia.
O segurança do supermercado que deseja “bom trabalho” ao cliente, e só depois corrige para “bom dia”.
A cidade dá matéria-prima suficiente para um livro por semana. O difícil é não a desperdiçar com frases que querem ser mais inteligentes do que o que viram.
Outra coisa sobre o começo: não é preciso originalidade. A obsessão da originalidade paralisa mais do que a falta de talento. Já vi muita gente calada durante anos para só abrir a boca quando “tiver algo mesmo novo”. Não abre. E quando abre, a voz vem enferrujada.
A originalidade é um efeito colateral da honestidade. Se fores mesmo honesto com o que vês e com o que sentes, já estás a entregar algo irrepetível: tu. O resto é ruído.
Também não é preciso sofrimento performativo. Há uma romantização da dor que vende bem, mas escreve mal. Sofrer não é um método; é uma circunstância. Se estás mal, escreve com cuidado; se estás bem, escreve com cuidado. A escrita não melhora por te faltar luz nem piora por teres a renda paga. Melhora quando aceitas que não tens de impressionar ninguém naquela página: tens de ser claro. A clareza é revolucionária.
Os meus primeiros textos eram longos para esconder inseguranças. Achava que, se ocupasse espaço, o leitor respeitava. Não respeita. O leitor respeita quando tu respeitas o tempo dele. Frases demasiado compridas pedem mesa posta; a maior parte do público lê em pé, no corredor entre estações. Troca um período que se arrasta por dois ou três que caminham. Não é proibição; é higiene.
Começar também é aceitar que nem tudo serve. Escrever é descartar. Sou menos orgulhoso com as minhas frases do que com a minha capacidade de as deitar fora. Não há tragédia em cortar um parágrafo que te deu trabalho; tragédia é deixá-lo ficar só porque te deu trabalho. Quem lê não tem culpa da tua teimosia. Uma página limpa é sempre mais generosa do que uma página cheia.
Quanto à voz — esse assunto que faz suar as mãos a gente séria —, a voz não se procura, descobre-se. E descobre-se escrevendo. Um dia, a meio de um texto que achavas igual aos outros, surge um andamento que te estranha e ao mesmo tempo te reconhece. Costumo guardar esses trechos e relê-los como quem relê uma conversa onde se disse, sem querer, algo verdadeiro. A voz não é uma invenção brilhante; é um encontro acidental que, a partir daí, começas a repetir com mais consciência.
Não romantizo a disciplina. Não acordo às quatro e meia para correr atrás do pôr do sol. Mas tenho uma regra que me salvou de muitas desistências: sentar-me mesmo quando não apetece. Os dias “sem vontade” são os que explicam por que razão continuas. Escrever com vontade é agradável; escrever sem vontade cria músculo. Não publico tudo o que faço; publico o que, depois de frio, ainda aguenta estar de pé. O resto foi ginásio.
A cidade ajuda.
Nunca me falhou matéria quando decidi sair de casa sem auriculares e sem planos. No eléctrico, já ouvi monólogos mais honestos do que em certos debates televisivos. No café, vi casais a terminarem uma história em três frases, como se a relação fosse uma chávena a rachar de dentro. Num passeio de bairro, uma criança explicou à mãe que “o futuro é quando o pai chega mais cedo” — e, nesse instante, entendi melhor a política do que em cem páginas de relatório. O mundo está em bruto; a escrita é o trabalho de o lapidar sem retirar a sua verdade.
Há quem defenda a técnica como se fosse uma religião. Respeito. Ajuda conhecer o ofício, saber o ritmo da pontuação, perceber quando uma metáfora é um truque e quando é uma janela. Mas há algo anterior a tudo: a decência de não mentir. A tentação de embelezar o que doeu. A vaidade de dramatizar o que foi apenas incómodo. O leitor não é burro. Sente quando lhe vendem perfume em vez de ar.
Outra coisa que aprendi: a pressa estraga a revisão e a revisão salva o texto. Se puderes, afasta-te do que acabaste de escrever. Toma um duche, lava loiça, dá uma volta. Volta e lê com olhos de quem não te deve favores. Sublinhar o que soa a pose, cortar o que serve só a ti, apertar a frase até ela respirar melhor. E, por favor, poupa adjetivos. Um bom substantivo com um verbo decente aguenta mais do que quatro adjetivos aflitos.
No princípio, quase ninguém lê. E está bem assim. A invisibilidade é um luxo que só te apercebes quando acaba. Aproveita-a para falhar com dignidade. Publica pouco, treina muito. A tua relação com a escrita não pode depender do número ao lado do coração. Um texto com cinquenta “gostos” pode valer mais do que um viral esquecido no dia seguinte. A métrica mais séria continua a ser esta: quando relês daqui a seis meses, ainda te reconheces?
Se te perguntarem “sobre o quê escreves?”, não te apresses a dizer “sobre tudo”. É suspeito. Diz “sobre o que consigo ver”. E depois treina o olhar para veres mais. Escreve sobre a tua rua como se fosse o centro do mundo, porque é — para quem lá vive. Escreve sobre o corpo como se fosse um país. Escreve sobre o país como se fosse um corpo cansado a pedir descanso. Não há assunto pequeno quando o tratamento é sério.
Também convém dizer: não deves nada ao cinismo. A ironia é útil; o cinismo esteriliza. Uma frase que goza com tudo fica bonita no momento e pobre no arquivo. Procura a inteligência que acolhe, não a que humilha. Se o teu texto precisar de deitar alguém abaixo para ser forte, não é forte; é fraco com microfone.
E sim, às vezes a vida atropela o começo. Trabalhos maus, horários, contas. Ninguém vive de ar elegante e cadernos caros. Ainda assim, é possível roubar tempo ao inevitável. Escreve no telemóvel entre paragens, grava notas de voz, leva cartões de metro com frases a metade. Não há método único; há insistência. Um parágrafo por dia é um livro por ano se não desistires a meio. Faz as contas.
Termino como comecei: a cidade acorda. O primeiro autocarro faz o barulho do costume, a senhora do quinto põe o lençol ao sol, o rapaz da bomba de gasolina acerta o bico do lado esquerdo. Nada disto é épico, e é por isso que merece página. O começo não tem clarins. Tem um caderno aberto e a humildade de lhe dar qualquer coisa que não se envergonhe de reler daqui a uns meses.
Se chegaste até aqui, não esperes mais uma dica. Fecha este texto. Abre o teu. É assim que se começa: quando ninguém está a ver.
Caderno do Início — Aurelian Draven




E se leres este texto, como eu fiz, não uma mas várias vezes, nunca vais escrever a primeira frase. Escrever é é algo de muito solitário para que possas sentir que é teu e que estás a ser honesto. Nunca valorizes o interlocutor imaginário que pode, ou não, estar do outro lado, porque do outro lado tens de estar tu e tens de permanecer inteiro para que a tua narrativa ganhe corpo. Não tenhas medo das palavras. São a tua única ferramenta para dar vida aos silêncios que guardaste com os olhar.
Então começa! Sem pressa de chegar ao fim. Quando chegar a hora exacta, aquele instante em que relendo o que escreveste tu te perguntas: - como é qu…
Simples, direto e eficaz