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Alberto Carvalho — Narrador para quem ainda escuta as palavras

O espaço de Alberto Carvalho, crónicas, contos e reflexões para quem lê devagar

As Chaves que Portugal Perdeu

Nem todas as expulsões se medem em quilómetros; algumas pesam séculos inteiros.


Há um rumor que atravessa séculos: o som de uma chave a rodar numa porta que já não existe. Para muitos sefarditas expulsos, essa chave — real ou imaginada — foi guardada como se guardasse a própria terra.


Não era ferro apenas: era casa, memória, pertença.


Portugal tem dificuldade em imaginar-se como país que expulsou os seus.


Preferimos falar das caravelas e das partidas para o mundo, não das fugas apressadas pela noite, com documentos falsos, ouro escondido nas costuras e filhos a perguntar para onde iam. No entanto, a história é feita também dessas portas fechadas para sempre.


Entre os séculos XV e XVII, não perdemos apenas cidadãos; perdemos médicos, tradutores, navegadores, banqueiros, astrónomos, poetas. Perdemos quem tinha mapas diferentes, redes diferentes, ideias diferentes.


Perdemos camadas de inteligência que poderiam ter tecido um país menos desconfiado e mais cosmopolita.


E, contudo, parte desse Portugal viajou dentro deles.


O português misturou-se com o hebraico em canções e orações, resistiu em bairros de Salónica, Istambul ou Amesterdão, atravessou gerações como quem carrega um brasão invisível.


É por isso que, quando reencontramos hoje descendentes de sefarditas, o espanto não está apenas no parentesco biológico — está na sobrevivência de uma língua, de uma melodia, de um tempero que a distância e o tempo não conseguiram dissolver.


As chaves que Portugal perdeu não foram todas para o fundo do mar.


Algumas ficaram nas gavetas da memória, à espera de um gesto que seja mais do que simbólico.


Porque só quando reconhecemos que fomos também nós a trancar a porta é que podemos ter a coragem de abri-la de novo.


AC


Antiga chave enferrujada, símbolo da casa deixada para trás por famílias sefarditas expulsas de Portugal.
Símbolo Judaico

4 comentários

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Teresa C. Pessanha
11 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Sim, a coragem de abrir portas.

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O Caderno
O Caderno
13 de ago.
Respondendo a

Sim, Teresa, e também a coragem de não voltar a fechá-las. Muito obrigado por ler e por deixar um comentário que, ele próprio, abre mais uma porta.

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Convidado:
11 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Brilhante! Emocionei-me e parabéns por textos tão belos, lúcidos e cultos. Obrigada!

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O Caderno
O Caderno
13 de ago.
Respondendo a

Muito obrigado pelas suas palavras generosas. Saber que o texto emocionou e foi lido dessa forma dá-me a certeza de que valeu a pena escrevê-lo. Agradeço-lhe também por acompanhar e reconhecer o cuidado que coloco em cada linha.

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