As Chaves que Portugal Perdeu
- O Caderno

- 8 de ago.
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Nem todas as expulsões se medem em quilómetros; algumas pesam séculos inteiros.
Há um rumor que atravessa séculos: o som de uma chave a rodar numa porta que já não existe. Para muitos sefarditas expulsos, essa chave — real ou imaginada — foi guardada como se guardasse a própria terra.
Não era ferro apenas: era casa, memória, pertença.
Portugal tem dificuldade em imaginar-se como país que expulsou os seus.
Preferimos falar das caravelas e das partidas para o mundo, não das fugas apressadas pela noite, com documentos falsos, ouro escondido nas costuras e filhos a perguntar para onde iam. No entanto, a história é feita também dessas portas fechadas para sempre.
Entre os séculos XV e XVII, não perdemos apenas cidadãos; perdemos médicos, tradutores, navegadores, banqueiros, astrónomos, poetas. Perdemos quem tinha mapas diferentes, redes diferentes, ideias diferentes.
Perdemos camadas de inteligência que poderiam ter tecido um país menos desconfiado e mais cosmopolita.
E, contudo, parte desse Portugal viajou dentro deles.
O português misturou-se com o hebraico em canções e orações, resistiu em bairros de Salónica, Istambul ou Amesterdão, atravessou gerações como quem carrega um brasão invisível.
É por isso que, quando reencontramos hoje descendentes de sefarditas, o espanto não está apenas no parentesco biológico — está na sobrevivência de uma língua, de uma melodia, de um tempero que a distância e o tempo não conseguiram dissolver.
As chaves que Portugal perdeu não foram todas para o fundo do mar.
Algumas ficaram nas gavetas da memória, à espera de um gesto que seja mais do que simbólico.
Porque só quando reconhecemos que fomos também nós a trancar a porta é que podemos ter a coragem de abri-la de novo.
AC




Sim, a coragem de abrir portas.
Brilhante! Emocionei-me e parabéns por textos tão belos, lúcidos e cultos. Obrigada!