A Toga Rasa
- Alberto Carvalho - Narrador

- 29 de jul.
- 3 min de leitura
O Juiz que Rendeu a Constituição
Nos Estados Unidos, a mais alta instância judicial não é apenas um tribunal: é um símbolo fundacional, uma espécie de altar laico onde se decide o sentido último da Constituição.
À frente desse Supremo Tribunal está John Roberts, Juiz chefe desde 2005, nomeado por George W. Bush e, durante anos, visto como uma figura moderada, fiel ao equilíbrio institucional.
Mas nos últimos tempos, com Donald Trump a regressar como sombra ameaçadora e o sistema democrático norte-americano a tilintar como um copo rachado, Roberts tem-se revelado como um facilitador da erosão do Estado de Direito — não por fanatismo, mas por cobardia disfarçada de neutralidade.
E, como tantas vezes acontece, é o medo dos moderados que abre caminho ao excesso dos extremos.
Há homens que, ao vestirem a toga, deixam de ser homens — e há outros que, ao trajarem-na, revelam o vazio por dentro do traje.
O caso de John Roberts pertence a esta segunda espécie: a daquelas figuras que, em vez de protegerem o edifício da Justiça, parecem usar-lhe os alicerces como púlpito onde se ajoelham, dia após dia, perante o ídolo do poder.
Durante anos, venderam-nos a ideia de que Roberts seria o centro ponderado de um tribunal em desequilíbrio, a âncora sensata num oceano ideológico em ebulição.
Hoje, esse mito estilhaça-se como vidro diante da história.
Porque cada nova decisão do Supremo — cada silêncio cúmplice, cada hesitação cúbica, cada voto que absolve a brutalidade com vestes de legalidade — mostra-nos um homem que já não decide com base no Direito, mas sim na esperança de sobreviver à tempestade que ajudou a convocar.
Não se trata apenas de uma inclinação política.
Trata-se de um projeto de desmantelamento.
Um tribunal que, na sombra dos seus próprios precedentes, se permite rasgar os limites constitucionais para agradar ao poder executivo.
Que fecha os olhos ao exílio da razão e ao retorno da arbitrariedade.
Que retira às agências independentes o pouco escudo que ainda as separava do capricho presidencial.
Que aceita, sem rubor, que o chefe do Estado se torne inimputável mesmo depois de ter incitado à violência contra o próprio Estado.
John Roberts, que estudou os Federalist Papers, que conheceu de cor o princípio da separação de poderes, que jurou fidelidade à Constituição — John Roberts tornou-se agora o arquiteto de um novo tipo de rendição.
Uma rendição jurisprudencial, solene e deliberada, à ideia de que o presidente pode tudo, desde que o deseje o suficiente.
O que antes era abuso, agora é precedência.
O que antes era autoritarismo, agora é pragmatismo judicial.
Mas o que mais fere — e falo aqui como homem antes de falar como narrador — é o ar de normalidade com que tudo isto é feito.
Como se não estivéssemos a assistir à lenta agonia de um ideal republicano americano, mas apenas a mais um capítulo técnico na interpretação de cláusulas.
O Direito, esvaziado do seu espírito, tornou-se um ritual burocrático ao serviço de um poder que já não conhece travões.
A História saberá distinguir os juízes que foram fiéis ao seu ofício daqueles que fizeram do silêncio uma jurisprudência e da omissão um acórdão.
A toga, que deveria pesar nos ombros como memória do dever, tornou-se leve — tão leve que já não se distingue de uma capa de disfarce.
E se, um dia, este tribunal for lembrado como o último a guardar a aparência de justiça antes do colapso institucional, saberemos porquê.
Porque o seu chefe preferiu conservar o cargo em vez da coragem.
Porque, diante do arbítrio, escolheu proteger o posto em vez do povo.
Porque, em vez de dizer “não” ao despotismo, disse “talvez”.
E nesse “talvez”, perdeu-se a República.
AC




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