A Carta da Fernanda
- Alberto Carvalho - Narrador

- 28 de jul.
- 4 min de leitura
A Carta da Fernanda
Conheço muita gente.
Gente de todas as idades, feitios, silêncios e gargalhadas.
Já não sou novo — e isso, ao contrário do que dizem, não me pesa.
Acrescenta.
Acrescenta-me histórias, nomes, ruas, vozes que ficaram presas no fundo do ouvido, sorrisos mal fotografados, gestos que recordo melhor do que rostos.
Acrescenta-me vidas.
E, no meio dessas vidas todas, há uma de que me lembro como se fosse agora — a da Fernanda.
Não sei se foi num outono, ou se apenas o céu estava cansado nesse dia.
Lembro-me de a ter visto sentada num banco de madeira, ao lado do quiosque.
Trazia um casaco de lã cinzento, demasiado largo, e um livro dobrado nas mãos como se fosse um segredo.
Tinha uns olhos doces — desses que não acusam ninguém, mas também não esquecem.
Parei.
Disse-lhe bom dia.
Ela respondeu com um sorriso inteiro.
Falámos pouco.
Era daquelas conversas pequenas que se escoam no intervalo do chá.
Disse-me que tinha sido professora, que agora andava mais por casa, que gostava de observar as pessoas.
“As pessoas correm muito”, comentou.
Concordei, claro.
Não sei se pelo hábito de concordar com gente sensível, ou porque de facto é verdade: corremos sem saber se vamos a tempo.
Naquele mesmo dia, quando cheguei a casa, sentei-me com o casaco vestido e escrevi-lhe.
Não um bilhete.
Uma carta.
Uma carta de verdade, com vocativo, suspiros e tudo.
Escrevi como quem escreve a um lugar que não se quer perder.
Disse-lhe que a sua presença tranquila me tinha ficado presa à pele.
Que o seu jeito de escutar me tinha lembrado a minha mãe.
Que a ternura dos seus dedos sobre o livro — aquele cuidado quase litúrgico — me devolvera a vontade de escrever devagar.
Assinei com o meu nome inteiro.
Meti num envelope.
No dia seguinte, voltei ao quiosque, perguntei se alguém conhecia a Fernanda, e uma senhora de cabelo branco apontou-me a janela dela.
Deixei a carta na caixa do correio e fui-me embora.
Passaram-se semanas.
Não esperei resposta.
Quem escreve com o coração não exige devolução — guarda-se, e já está.
Mas um dia, encontrei um envelope com o meu nome, sem remetente.
Lá dentro, apenas duas linhas: “A sua carta vale mais do que muitos anos da minha vida. Aceita um chá?”
Aceitei.
Fui à casa da Fernanda numa quinta-feira de fim de tarde.
Trazia bolachas e um receio tímido.
Ela abriu a porta como quem abre uma história.
A casa cheirava a maçã e a livro.
Havia tapeçarias nos sofás, molduras discretas nas estantes, e uma música de fundo que parecia mais silêncio do que som.
Sentámo-nos na sala.
Chá de lúcia-lima, disse ela.
E eu disse que sim, claro, mesmo sem gostar muito.
Foi só depois de duas chávenas que me mostrou: a carta estava ali, em cima da cómoda, dentro de uma moldura de madeira escura, com vidro espesso, protegida como um relicário.
Não tinha corrigido nada.
Nem uma vírgula.
“É a coisa mais bonita que me escreveram desde que o meu marido morreu”, confessou.
Ficámos em silêncio.
Um silêncio bom.
Dos que enchem o peito e não o vazio.
Começámos a ver-nos com alguma frequência.
Nunca com hora marcada.
Às vezes, eu passava pelo prédio dela e via a luz da sala acesa.
Subia.
Outras vezes era ela que me deixava uma flor seca na caixa do correio, sinal de que havia chá e conversa.
Falávamos da vida.
Do que tínhamos feito e do que não fizemos.
Ela contava-me histórias de alunos, de viagens que não chegou a fazer, de cartas que escreveu a si própria.
Eu falava pouco.
Quase sempre escutava.
A Fernanda não era uma mulher triste.
Era uma mulher serena.
Daquelas que se vestem de outono mesmo em julho.
Daquelas que sabem o que pesa, mas escolhem o que fica.
Não havia entre nós amor, no sentido habitual da palavra.
Mas havia um carinho antigo, mesmo sendo novo.
Uma afeição que não pede e que não falta.
Uma amizade daquelas que só se tem uma ou duas vezes na vida.
Recordo-me de uma tarde em que me leu um poema.
Era de Sophia.
E disse: “Nunca percebi bem este verso, mas gosto dele assim mesmo.”
Era esse o seu modo de estar: não compreender tudo, mas sentir tudo.
E isso, dizia ela, bastava-lhe.
O tempo passou como passa tudo o que é bom: sem barulho.
Um dia, deixei de encontrar flores no correio.
Subi.
A luz estava apagada.
Perguntei ao porteiro.
Estava internada.
Nada grave, disse ele.
Mas algo me doeu.
Fui visitá-la ao hospital.
Trazia outro envelope, com outra carta.
Não consegui lê-la em voz alta.
Dei-lhe.
Ela sorriu, apertou-a contra o peito, e disse apenas: “Ainda bem que escreve. Há pessoas que não sabem como dizer nada.”
A carta ficou ali, ao lado da almofada.
Quando me fui embora, ela adormeceu.
Dois meses depois, recebi um postal.
Era da sobrinha da Fernanda.
Dizia que ela tinha partido.
E que, entre os seus objetos mais queridos, estavam duas cartas — as minhas.
Uma na moldura, outra ainda dobrada.
Ambas com cheiro a chá.
Hoje, às vezes, passo pelo quiosque.
Sento-me naquele mesmo banco.
Vejo as pessoas correrem.
E lembro-me da Fernanda, que não corria nunca.
Que lia devagar.
Que ouvia com alma.
Que fez de uma carta uma moldura.
E de um gesto simples, uma eternidade.
AC




Adorei e emocionei-me. Gostava também de guardar esta carta. Será que me poderá enviar?
Lindo! Posso publicar no x?
Até dói o coração de tão belas palavras. Que conto maravilhoso!