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Alberto Carvalho — Narrador para quem ainda escuta as palavras

O espaço de Alberto Carvalho, crónicas, contos e reflexões para quem lê devagar

A Caneta Azul

A Caneta Azul


O miúdo chamava-se Tiago, tinha dezassete anos e estava farto de ouvir dizer que não ia dar em nada.


Nem nos professores ele acreditava.


Diziam que tinha talento para escrever, mas isso para ele era como dizer a um pássaro de gaiola que canta bem — para quê, se não há onde voar?


Tiago vivia num terceiro andar sem elevador, num bairro que só aparecia nas notícias quando alguém morria ou a polícia fazia uma rusga.


O pai desaparecera antes dele nascer.


A mãe passava os dias num supermercado e as noites a enfiar envelopes para uma empresa que nunca chegou a conhecer.


Ao fim-de-semana, dormia.


E ele, quase sempre, escrevia.


Tinha um caderno velho, todo rabiscado, e uma caneta azul que roubara no balcão da junta.


Era com ela que se sentava à janela e escrevia histórias que ninguém lia.


Histórias de lugares que não existiam, de miúdos como ele a fazer coisas que nunca faria — fugir, salvar alguém, ser visto.


Nunca mostrou a ninguém.


Mas um dia — só por raiva — mandou um texto para um concurso literário da escola.


Assinou “Tiago G.”


Sem esperança.


Sem convicção.


Na véspera do resultado, pensou em rasgar tudo.


No dia seguinte, não foi à escola.


O que não sabia — o que nunca saberia — é que naquele dia, no anfiteatro, leram o seu texto em voz alta.


Os alunos escutaram em silêncio.


A professora de português chorou.


E alguém, lá no fundo, perguntou: “Quem escreveu isto?”


Mas o autor não estava lá.


Tinha ido ao rio.


Com o caderno.


E a caneta azul.


Não ganhou o prémio.


Mas naquela tarde, pela primeira vez, escreveu algo diferente.


Escreveu sobre si.


Não sobre um miúdo inventado.


Não sobre um herói qualquer.


Mas sobre o Tiago que tinha ficado em casa.


Que ninguém aplaudiu.


Mas que continuava a escrever.


E nesse instante, descobriu: não precisava que o mundo o visse — bastava que o mundo o lesse.


Mesmo que fosse só uma pessoa.


Mesmo que fosse só uma vez.


E continuou.


Continuou a escrever com a mesma caneta azul — até ao fim da tinta.


E depois?


Depois escreveu com lápis, com carvão, com dedos no ar.


Mas escreveu.


Escreveu tanto que um dia, muitos anos depois, uma mulher pegou num livro dele numa livraria — e disse, sem saber: “Parece que foi escrito por alguém que viveu muito calado.”


E estava certa.


Porque o Tiago calou-se.


Mas nunca deixou de dizer.


AC

Crianças
Crianças

2 comentários

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Convidado:
28 de jul.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Adorei a história e a simplicidade da escrita.

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O Caderno
O Caderno
29 de jul.
Respondendo a

Muito obrigado. Que a simplicidade tenha tocado é sinal de que a verdade encontrou caminho. Fico muito grato por ter lido — e por ter sentido.

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