A Caneta Azul
- Alberto Carvalho - Narrador

- 27 de jul.
- 2 min de leitura
A Caneta Azul
O miúdo chamava-se Tiago, tinha dezassete anos e estava farto de ouvir dizer que não ia dar em nada.
Nem nos professores ele acreditava.
Diziam que tinha talento para escrever, mas isso para ele era como dizer a um pássaro de gaiola que canta bem — para quê, se não há onde voar?
Tiago vivia num terceiro andar sem elevador, num bairro que só aparecia nas notícias quando alguém morria ou a polícia fazia uma rusga.
O pai desaparecera antes dele nascer.
A mãe passava os dias num supermercado e as noites a enfiar envelopes para uma empresa que nunca chegou a conhecer.
Ao fim-de-semana, dormia.
E ele, quase sempre, escrevia.
Tinha um caderno velho, todo rabiscado, e uma caneta azul que roubara no balcão da junta.
Era com ela que se sentava à janela e escrevia histórias que ninguém lia.
Histórias de lugares que não existiam, de miúdos como ele a fazer coisas que nunca faria — fugir, salvar alguém, ser visto.
Nunca mostrou a ninguém.
Mas um dia — só por raiva — mandou um texto para um concurso literário da escola.
Assinou “Tiago G.”
Sem esperança.
Sem convicção.
Na véspera do resultado, pensou em rasgar tudo.
No dia seguinte, não foi à escola.
O que não sabia — o que nunca saberia — é que naquele dia, no anfiteatro, leram o seu texto em voz alta.
Os alunos escutaram em silêncio.
A professora de português chorou.
E alguém, lá no fundo, perguntou: “Quem escreveu isto?”
Mas o autor não estava lá.
Tinha ido ao rio.
Com o caderno.
E a caneta azul.
Não ganhou o prémio.
Mas naquela tarde, pela primeira vez, escreveu algo diferente.
Escreveu sobre si.
Não sobre um miúdo inventado.
Não sobre um herói qualquer.
Mas sobre o Tiago que tinha ficado em casa.
Que ninguém aplaudiu.
Mas que continuava a escrever.
E nesse instante, descobriu: não precisava que o mundo o visse — bastava que o mundo o lesse.
Mesmo que fosse só uma pessoa.
Mesmo que fosse só uma vez.
E continuou.
Continuou a escrever com a mesma caneta azul — até ao fim da tinta.
E depois?
Depois escreveu com lápis, com carvão, com dedos no ar.
Mas escreveu.
Escreveu tanto que um dia, muitos anos depois, uma mulher pegou num livro dele numa livraria — e disse, sem saber: “Parece que foi escrito por alguém que viveu muito calado.”
E estava certa.
Porque o Tiago calou-se.
Mas nunca deixou de dizer.
AC




Adorei a história e a simplicidade da escrita.