Quando um padre serve dois altares, um deles deixa de arder com liberdade
- O Caderno

- 5 de ago.
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Entre Figuras e Figas: A Comunhão à Sombra da Figueira
No coração da teologia católica, a palavra “comunhão” não é um ornamento — é uma raiz.
E no entanto, quando um discurso propõe reforçá-la através de uma estrutura paralela, organizada, hierárquica e obediente a uma autoridade fora da diocese, é legítimo perguntar: será essa comunhão ou uma duplicação eclesial disfarçada de fidelidade?
O texto recentemente publicado pelo Opus Dei sobre a vocação do sacerdote diocesano à Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz (4 de agosto de 2025) apresenta-se como uma exposição serena e inspiradora.
No entanto, por detrás das imagens bíblicas, dos testemunhos edificantes e da retórica da fidelidade, levanta-se uma questão séria, que a linguagem suavizada não deve esconder: pode um padre diocesano pertencer formalmente a uma entidade eclesial com estatuto jurídico próprio, submetida a uma prelazia pessoal, sem que isso afete a sua plena pertença ao presbitério local?
O documento insiste que não há qualquer conflito: o sacerdote “não abandona nem modifica em nada sua vocação diocesana”.
Mas será mesmo assim?
Ou estaremos perante uma reinterpretação da noção de incardinação, onde a pertença afetiva, espiritual e formativa é gradualmente deslocada para outro eixo de fidelidade?
Em teoria, a incardinação permanece.
Na prática, a formação espiritual, os retiros, os círculos de meditação, os diretores de consciência, o léxico, os padrões de vida, o tempo e até a linguagem emocional do clero diocesano vinculado ao Opus Dei passam a orbitar em torno de uma estrutura exterior ao bispo.
Isto não seria um problema se estivéssemos a falar de um movimento de leigos.
Mas quando se trata de sacerdotes — homens cuja obediência ao ordinário é parte intrínseca da sua consagração — qualquer dupla filiação merece discernimento rigoroso.
A própria eclesiologia do Concílio Vaticano II, sobretudo na Presbyterorum Ordinis, insiste na unidade orgânica do presbitério em torno do bispo, como expressão visível da comunhão eclesial.
Quando um grupo de padres recebe acompanhamento espiritual, orientações e até atribuições de missão por via de uma organização à parte, surge inevitavelmente a sensação de “clero dentro do clero” — uma fraternidade particular dentro da fraternidade comum, ainda que se proclame fidelíssima à diocese.
Claro que há muitos modos de viver o sacerdócio.
Claro que a Igreja valoriza a diversidade de carismas e os apoios à vida espiritual dos padres.
Mas há um limite: quando a pertença a um instituto começa a reconfigurar a identidade pastoral, espiritual e relacional de um padre, esse limite aproxima-se perigosamente.
E o mais curioso é que se insiste tanto em que “nada muda”, que quase se denuncia o contrário.
Porque o que de facto se procura no texto — e é legítimo reconhecê-lo — é uma maior perfeição sacerdotal.
Só que essa perfeição é proposta não na via comum da diocese, mas numa via específica, codificada, regimentada, com estatutos e promessas — ainda que isso se disfarce sob a linguagem da figueira de Natanael.
Perguntemos com honestidade: como pode o bispo exercer plenamente o seu pastoreio quando parte dos seus padres são formados espiritualmente fora do seminário, guiados espiritualmente por outros que não ele, integrados numa lógica que não responde nem reporta diretamente ao ordinário, mas ao prelado de uma prelazia pessoal?
Ainda que se diga o contrário, a realidade funcional — eclesial, espiritual e pastoral — torna-se inevitavelmente dual.
Não se trata de julgar a intenção dos que se associam à Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz.
Muitos são homens bons, generosos, autênticos servidores de Deus.
Mas a boa vontade individual não corrige a fragilidade da estrutura eclesial que se cria.
A comunhão não é apenas uma fidelidade jurídica; é também uma linguagem simbólica, um tempo partilhado, um sentido pastoral comum.
Quando isso se esvai, o corpo começa a cindir-se, mesmo que os membros continuem a bater no mesmo coração.
A pergunta que se impõe, à luz da eclesiologia católica, é simples mas séria: quem forma o clero diocesano?
A quem pertence o coração dos padres?
E, se a resposta não for unívoca, talvez estejamos menos à sombra de uma figueira bíblica e mais à sombra de um equívoco.
AC




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