Primeiras páginas não têm índice
- Aurelian Draven

- 22 de ago.
- 5 min de leitura
Há dias que começam antes do despertador.
Não porque sejamos heróis do amanhecer, mas porque há uma inquietação que não se deixa adiar: a sensação de que hoje começa qualquer coisa, e que tudo o que aprendemos até aqui serve apenas como mapa desenhado a lápis — útil, mas pronto a ser apagado pelo primeiro imprevisto.
Saio cedo.
A cidade ainda tem o ar desalinhado de quem acabou de acordar.
Há trabalhadores que parecem figurantes de uma peça sem público, uma senhora varre a frente da mercearia, um homem fuma junto à carrinha do pão, o motorista do autocarro testa as luzes.
O silêncio não é total, mas as palavras andam baixas, como se o dia tivesse de ganhar confiança antes de falar alto. Gosto deste intervalo em que tudo pode ser e ainda não é.
As primeiras páginas têm esse defeito maravilhoso: não prometem respostas, apenas disponibilidade.
No café — chama-se “Vintage” e aceita MB Way, a ironia não é minha — peço um galão e uma torrada que vem sempre com manteiga a mais.
A rapariga da caixa tem um sorriso cansado e unhas pintadas de azul.
O rádio dá notícias que não peço: inflação, uma greve anunciada, um relatório sobre a saúde mental dos jovens.
Parece que a vida é um boletim meteorológico perpétuo, com avisos laranja e vermelho para quase tudo.
Pago, sento-me, abro o caderno, é a minha maneira de afiar o dia.
Não para o tornar menos perigoso, mas para que corte melhor as indecisões.
Quando chego à primeira linha ainda não sei nada.
Tenho apenas fragmentos: o homem do pão, o autocarro, o sorriso azul, a voz do radialista a dizer “em atualização”.
Tento ligar os pontos com frases que não se envergonhem de ser simples. Aprendi depressa que a simplicidade exige coragem: é mais fácil esconder inseguranças atrás de palavras grandes do que arriscar uma verdade breve.
Há quem se habitue a dizer que a nossa geração vive depressa e sente devagar.
Eu desconfio das generalizações, mas reconheço a tentação: passamos os dedos por ecrãs como rosários horizontais, pedimos satisfação imediata aos pequenos deuses da atenção, e quando não vem a resposta ficamos com uma fome que não sabemos nomear. Talvez por isso escreva: para abrandar a mão, para deixar a fome dizer de que tem fome, para distinguir entre o que posso mudar e o que só posso aceitar.
A minha avó dizia que “o que tem de ser tem muita força”.
Quando tinha dez anos isso irritava-me: soava a resignação e eu queria o contrário — queria piruetas, descobertas, escadas rolantes para o céu.
Agora entendo melhor: o que tem de ser não me tira a liberdade; dá-me contorno. É como a margem do rio: não decide a água, mas impede que a água se perca em charcos.
Nas primeiras páginas de qualquer coisa — um livro, um trabalho, um amor — precisamos de margens. Há quem as confunda com limites; eu prefiro chamá-las de forma.
No autocarro, duas pessoas discutem em sussurros.
Ele diz “tu não me ouves”, ela diz “tu não me escutas”. São verbos parecidos, mas não iguais. Ouvir é biologia; escutar é escolha.
Aprendi a diferença com quem me quis bem.
Também a escrita é uma forma de escuta: escuto o que a frase pede para ser, escuto a que distância a metáfora começa a exagerar, escuto quando é altura de parar.
O vício do iniciante é achar que tudo cabe numa só página; o vício do experiente é esquecer-se de que a página pode sempre surpreender.
Trabalho numa sala onde a luz insiste em ser lateral.
Alguém decidiu que os candeeiros deviam fingir crepúsculo às dez da manhã.
Às vezes penso que a arquitetura tem uma pedagogia secreta: ensina-nos, sem dizer, a curvar os ombros, a acelerar passos, a falar mais baixo.
No intervalo, olho a rua pela janela e faço contas microscópicas: quantos passos até ao quiosque, quantos minutos para um café, quantas frases posso escrever antes que o relógio toque outra vez.
Não é produtividade, é autodefesa: a tentativa de dar ao tempo a dignidade de uma matéria trabalhável.
Ao almoço, duas mesas atrás, alguém diz “o que me falta é tempo para ser eu”.
Tento não sorrir. Sei o que é isso e sei como a frase escorrega: por um lado, a verdade evidente — o mundo devora horas; por outro, a fuga perfeita — é mais cómodo culpar o relógio do que assumir que, às vezes, temos medo de ser quem somos.
Não julgo.
Também eu, mais vezes do que gosto de admitir, adio o que importa com tarefas impecavelmente inúteis.
Se a procrastinação pagasse IMI, eu tinha isenção vitalícia.
Nas primeiras páginas, a honestidade paga-se caro.
Não me refiro a confissões em voz alta, dessas a internet está cheia; falo de honestidade de oficina — cortar o parágrafo que ficou bonito mas desnecessário, substituir a imagem fácil, aceitar que hoje não há frase perfeita e ainda assim entregar o texto.
A única diferença entre escrever e não escrever está em sentar-me e ficar. A liberdade raramente chega como epifania; chega como hábito.
Volto a casa ao fim da tarde.
A cidade já afasta os candeeiros de si, como quem dispensa bengalas.
Há uma criança que chora no supermercado, um adolescente que ri alto ao telefone, uma senhora que compra um maço de tabaco e pede “aquele com menos culpa”.
Gosto deste teatro involuntário, destes papéis sem ensaio.
É aqui, nestas miudezas, que o mundo me parece mais verdadeiro: não nos grandes discursos, mas no esforço pequeno de cada um para atravessar o dia com um mínimo de dignidade.
À noite, abro de novo o caderno.
As primeiras páginas do início da manhã já têm riscos, setas, pequenas desistências.
Deixo estar.
O rascunho é um retrato honesto do caminho: não há glória em fingir que foi limpo. Escrever não é alinhar vitórias, é aprender a perder menos.
Quem lê talvez não repare, mas há gestos invisíveis que protegem uma frase de cair: a palavra que troquei para não repetir, o advérbio que recusei para não explicar demais, o substantivo que aguenta o peso sem pedir muletas.
São estas minúcias que me lembram por que motivo escolhi este ofício: a possibilidade de construir algo que fique, mesmo que ninguém saiba o trabalho que custou ficar.
Penso no futuro e recuso deliberadamente a ansiedade dos calendários.
Não tenho a ambição de mudar o mundo; tenho a determinação de lhe ser fiel.
Se um leitor, apenas um, encontrar numa linha minha a coragem que lhe faltava para começar — seja o que for —, então as minhas primeiras páginas cumpriram serviço público.
Não é modéstia: é medida.
A grandeza não está no aplauso, está no alcance.
Antes de fechar o caderno, releio a primeira frase que escrevi de manhã.
Está torta e, por isso mesmo, verdadeira.
Decido deixá-la como ficou.
As primeiras páginas não têm índice; têm ousadia.
A ordem vem depois, quando a vida provar que a merece. Até lá, o meu trabalho é simples: aparecer. Sentar. Escutar. Escrever.
Apago a luz. A cidade calou-se, mas não dorme. Também não.
Há começos que adiam o sono — não por inquietação, mas por gratidão.
Amanhã recomeço, e isso, apesar de tudo, é uma forma de paz.
Caderno do Início — Aurelian Draven




Um hábito que se repete dia a dia num caderno cheio de frases riscadas e refeitas. Que bom! Nestes dias em que se fala de anular o PNL sabe bem ter a mão uma escrita tão fluente, que nos fala dum dia que decorre enquanto a terra dá uma volta completa. Gostei muito. Parabéns.
Maravilhoso, um dia bem passado, ... só faltam as batatas fritas 😁
Leio-o como quem caminha, ao acaso, pela manhã. Uma escrita com luz, cheiro e sabor...