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Alberto Carvalho — Narrador para quem ainda escuta as palavras

O espaço de Alberto Carvalho, crónicas, contos e reflexões para quem lê devagar

O Amor é um Feriado que Não se Assinala

Atualizado: 20 de ago.

Alberto Carvalho — O Amor é um Feriado que Não se Assinala


Amanhã é 15 de agosto, feriado nacional em honra de Nossa Senhora da Assunção.


Dia santo para os católicos, com missa obrigatória e procissões em muitas terras, mas também ocasião de romaria popular, onde a fé e a festa se misturam como há séculos.


Para outros, será apenas um dia a mais no calendário, com o descanso possível e a rotina ligeiramente suspensa.


Pensei que podia aproveitar a véspera para falar de um assunto que não cabe no calendário nem se limita a ritos: o amor.


Não o “amor” das capas de revista, feito de retoques e frases que parecem ter saído de um cartão perfumado.


O outro.


O que se inventa no improviso, o que chega atrasado e ainda assim é recebido à porta, o que sobrevive aos silêncios e aos dias maus.



O amor que me interessa não se deixa medir em aniversários nem cabe em datas fixas.


É mais parecido com uma ponte improvisada: feita de pedaços de madeira que se tinham à mão, e que se reconstrói todos os dias para que o outro possa atravessar sem cair.


É esse que me apetece escrever hoje.


No tempo em que os relógios ainda eram de corda, havia a ideia de que o amor durava para sempre.


Os retratos ficavam na sala, e quem passava via o casal na moldura como se nada lhes pudesse acontecer.


Mas a fotografia é apenas um instante congelado; o amor, esse, tem de atravessar invernos e verões, febres e noites mal dormidas.


Tem de aceitar que a vida nem sempre deixa lugar para flores na jarra, e que há semanas em que a única prova de afeto é o chá quente deixado na mesa antes de sair.



Hoje, trocámos a fotografia emoldurada pelo feed que se atualiza.


O amor é agora feito de mensagens rápidas, corações digitais, fotografias que se apagam passadas vinte e quatro horas.


Não digo isto com nostalgia — há beleza também na forma como encontramos meios novos para dizer o mesmo. Mas há uma diferença: a urgência.


Queremos respostas imediatas, declarações diárias, prova constante de que o outro está ali. E esquecemo-nos de que, às vezes, amar é justamente saber esperar.


O amor não se esgota na paixão.


A paixão é o incêndio; o amor é a casa que se reconstrói depois, com paredes mais fortes e janelas que se abrem quando o fumo já passou.


Há quem confunda as duas coisas e fuja quando as chamas baixam, procurando o próximo incêndio.


Mas quem já viveu algum tempo sabe que é nas manhãs normais, nas conversas repetidas, no cuidado quase invisível que se esconde o verdadeiro milagre.


E é aí que o feriado de amanhã me parece uma boa metáfora: um dia que não é para grandes acontecimentos, mas que nos oferece a pausa suficiente para olhar para o lado e reparar que a pessoa está ali, a segurar o mesmo jornal ou a mesma chávena de café.


Talvez seja esse o ponto mais alto da vida a dois: perceber que, no meio de tudo, escolhemos ficar.


O amor, quando é bom, não é uma prisão.


É um porto.


Podemos sair e regressar, sabendo que o outro não contou as horas nem fechou as portas.


É por isso que o amor exige coragem: coragem para mostrar fragilidades, para admitir falhas, para pedir desculpa. E também para ouvir sem se defender, para abraçar sem fazer perguntas, para calar quando é preciso.



Lembro-me de uma frase que ouvi a um velho marinheiro: “A âncora segura, mas não prende.”


O amor que vale a pena é assim.


Não se trata de manter alguém por falta de alternativas, mas de querer que seja precisamente essa pessoa a atravessar connosco os invernos e os verões.


Talvez o problema esteja na forma como o procuramos.


Falamos de “encontrar o amor” como quem encontra um objeto perdido. Mas o amor não está à espera numa esquina.


Ele nasce de gestos mínimos: uma mão que se estende sem que a peçamos, um riso que nos apanha desprevenidos, um cuidado que não se anuncia.


Cresce quando é alimentado, e definha se o deixarmos ao frio.



E não é só nos casais que o amor acontece.


Há amores que não passam pelo romance: o amor entre amigos que se salvam mutuamente sem fazer alarde; o amor dos pais que, mesmo cansados, deixam o melhor pedaço para os filhos; o amor de quem cuida de um desconhecido numa fila de hospital.


É desse que se constrói uma cidade habitável.


Amanhã, quando muitos acordarem sem saber exatamente o que fazer com o dia a mais, talvez seja boa ideia gastar parte dele a reparar no que nos liga.


Não no que nos separa — disso já se ocupam as notícias, as redes, os partidos.


Mas no que ainda nos permite olhar para alguém e sentir que estamos a salvo.


Se me perguntarem se o amor salva, respondo sem hesitar: sim.


Não porque cure todas as dores ou impeça todos os erros, mas porque nos dá uma razão para continuar a tentar.


É uma espécie de feriado interior que não depende de calendários: pode acontecer numa terça-feira de trabalho ou numa madrugada de insónia.




O amor é raro, sim.


Mas não é frágil como dizem.


Frágil é a nossa atenção, que se distrai com o barulho e deixa escapar os sinais.


O amor, quando existe, aguenta.


Aguenta más notícias, distâncias, tempestades.


Aguenta porque não se alimenta de promessas vazias, mas de gestos concretos, às vezes tão pequenos que só mais tarde percebemos o peso que tiveram.


Amanhã é feriado, e talvez para muitos seja só isso.


Mas para quem quiser, pode ser também o dia de olhar para alguém — ou até para si mesmo — e dizer, de forma clara: “Gosto de ti. E fico.


Não há calendário que valha mais do que isso.


AC

Fotografia com a palavra “LOVE” em grandes letras vermelhas, evocando afeto, união e esperança.
Love — O Feriado que Não se Assinala

26 comentários

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Convidado:
16 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Este feriado sempre foi um dia grande, de muito amor, na minha família. Era o dia do aniversario da mãe. O unico dia no ano em que a mãe não fazia o almoço. Não gostava de cozinhar, o que só soube muito tarde, mas fazia-o por amor à familia e à alegria da "mesa cheia". Se fosse viva, este ano seria de centenario.

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O Caderno
O Caderno
23 de ago.
Respondendo a

Que história tão bonita, amiga! É incrível como um texto pode ligar-nos a memórias e sentimentos tão profundos. A sua mãe, que cozinhava por amor à "mesa cheia", é um belíssimo exemplo desse amor silencioso que move o mundo. Agradeço-lhe do fundo do coração por partilhar uma memória tão querida comigo e por me deixar fazer parte da celebração deste centenário. Obrigado, de verdade.

Editado
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Convidado:
15 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Espetacular! Sem mais palavras...

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O Caderno
O Caderno
23 de ago.
Respondendo a

Obrigado, Alberto! É um prazer saber que continuo a ter o seu apreço. A sua generosidade e o seu carinho são uma grande motivação para mim.

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Convidado:
15 de ago.

Muito bom!...sempre atento e a maneira como o diz ...vale tudo

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O Caderno
O Caderno
23 de ago.
Respondendo a

Obrigado, Alberto. O seu comentário é um presente. É maravilhoso quando um leitor se conecta tanto com o texto que a sua resposta se torna uma obra de arte por si só. Agradeço imensamente o seu carinho e a sua capacidade de tocar o coração da história. É uma alegria ter leitores como o senhor.

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mafvaz
15 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

É tudo isso, tem razão!


Mas é também ler um poema como este que acabou de escrever e desejar continuar a ouvi-lo vezes sem conta. Nem sempre comento mas devia fazê-lo.

A sua escrita é a pura realidade desta vida que vivemos a correr como quem cá esteve e se afasta sem dar por isso.


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Respondendo a

Que mensagem bonita… Fico muito grato por essas palavras. Saber que a escrita encontra eco em si dá sentido a continuar. E cada comentário, mesmo breve, é sempre uma forma de prolongar o diálogo e a presença. Obrigado por estar desse lado.

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Convidado:
15 de ago.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Verdade.

Amor é carinho .

Amor é solidariedade.

Amor é partilha.

É URGENTE O AMOR

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Respondendo a

Que palavras tão certas… O amor como urgência, como cuidado e partilha, é talvez a maior lição destes tempos. Obrigado por trazer essa força ao espaço do texto.

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