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Alberto Carvalho — Narrador para quem ainda escuta as palavras

O espaço de Alberto Carvalho, crónicas, contos e reflexões para quem lê devagar

Carisma ou Estrutura?

Entre o Carisma e o Código - Teologia de uma Apropriação


A história da Igreja é uma tapeçaria de carismas, muitos dos quais surgiram como lampejos de reforma no meio do mundo.


Uns ficaram como brasas apagadas, outros tornaram-se chamas duradouras.


Mas todos, sem excepção, enfrentaram uma prova inevitável: o confronto entre o fervor do início e o corpo da Igreja a que se diziam submissos.


O Opus Dei não escapou a esse caminho — e talvez o tenha trilhado de forma única.


Fundado em 1928 por São Josemaria Escrivá, o Opus Dei nasceu como uma inspiração interior, recebida — diz-se — em estado de exaltação mística.


A proposta parecia desarmante na sua simplicidade: a santificação no meio do mundo, através do trabalho quotidiano, sem sair do estado laical ou clerical próprio de cada um.


A novidade era, precisamente, essa recusa do convento, da clausura, da separação do mundo.


A Obra não era uma ordem religiosa, não era um instituto secular — era uma outra coisa, a exigir um lugar novo na gramática da Igreja.


Esse “lugar novo” demorou a encontrar-se.


O Opus Dei viveu décadas num limbo jurídico, sem estatuto canónico claro.


A tensão era visível: como organizar uma realidade com disciplina interna, obrigações espirituais e um sistema de autoridade centralizado, sem recorrer às formas tradicionais dos institutos religiosos?


O Concílio Vaticano II não facilitou esse caminho: valorizando os carismas novos, pediu também clareza, sinodalidade e integração eclesial.


Mas o Opus Dei queria mais — queria uma estrutura própria.


Foi em 1982, sob João Paulo II, que a solução chegou: a Prelazia Pessoal, figura jurídica que não dependia de território mas de pessoas.


O Opus Dei passou a ser a única prelazia pessoal da Igreja, com estatutos próprios, clero próprio, prelado próprio — e uma autonomia subtil mas real em relação aos bispos locais.


Essa elevação canónica foi celebrada como um reconhecimento eclesial da santidade do carisma.


Mas para muitos teólogos — mesmo sem o dizerem publicamente — foi também o momento em que o carisma se tornou código.


E o código, em vez de servir a Igreja universal, passou a servir um corpo à parte.


A tensão teológica está precisamente aqui: o que é um carisma?


É um dom ao serviço da Igreja, não um território dentro dela.


Os franciscanos, os jesuítas, os beneditinos — todos nasceram de carismas fortes.


Mas submeteram-se a regras comuns, aceitaram estar sob os bispos, abriram os seus livros, formaram os seus membros em universidades eclesiais abertas, responderam ao Papa com o espírito da obediência, mesmo na dor.


O Opus Dei, pelo contrário, construiu-se como uma estrutura impermeável, com formação própria, linguagem própria, critérios de admissão próprios, e uma linha de comando que escapa a qualquer autoridade local.


É aqui que a teologia se inquieta.


Porque a Igreja não é feita apenas de fidelidade formal, mas de comunhão visível, de interdependência, de partilha dos dons.


Quando uma estrutura eclesial — ainda que aprovada — se torna um sistema quase fechado, a tensão entre carisma e instituição degenera numa forma de apropriação: o carisma já não é dado à Igreja, é retido pela organização.


A vocação dos padres diocesanos à Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz é o exemplo mais evidente dessa viragem.


O texto oficial do Opus Dei diz que “nada se perde” da vocação diocesana.


Mas a teologia ensina-nos que não basta dizer — é preciso ver.


E o que se vê, muitas vezes, é que os padres formados na espiritualidade da Obra assumem práticas, linguagens e fidelidades que progressivamente os afastam do presbitério local. 


A pertença à Obra, embora espiritual, reconfigura a identidade eclesial de forma quase invisível — mas real.


O risco é evidente: que um carisma originalmente aberto ao mundo acabe por criar o seu próprio mundo; que uma proposta de santidade no meio da vida se transforme numa vida à parte; que uma vocação de comunhão se torne uma estrutura de distinção.


Em última análise, a teologia deve interrogar-se: um carisma que se organiza como uma fortaleza é ainda um dom, ou tornou-se um poder? 


E essa pergunta, mesmo que incómoda, é um ato de fidelidade à Igreja — porque nenhum carisma está acima do discernimento.


AC


 entre a fé e codificação
Entre a Fé e Codificação

2 comentários

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Convidado:
09 de ago.
Avaliado com 4 de 5 estrelas.

Mais um texto excepcional.

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O Caderno
O Caderno
13 de ago.
Respondendo a

Muito obrigado pelo seu comentário. Fico muito satisfeito por saber que considerou este mais um texto excecional — é um incentivo para continuar a escrever.

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