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Alberto Carvalho — Narrador para quem ainda escuta as palavras

O espaço de Alberto Carvalho, crónicas, contos e reflexões para quem lê devagar

A Constituição e o Limiar

Segurança é uma casa com portas e fundamentos - não se ergue derrubando a família.


Há dias em que um país precisa de se ouvir a si próprio.


O despacho do Tribunal Constitucional foi um desses momentos.


Não trouxe fogo-de-artifício; trouxe coisa mais rara: um limite.


Disse, com a calma dos textos que nos sobrevivem, que a lei dos estrangeiros, tal como saiu do Parlamento, atravessou linhas que a própria República desenhou para se proteger de si mesma.


Não se trata de gostar ou não gostar de uma política: trata-se de saber se a vontade do dia cabe na moldura maior do direito.


Responderam-lhe, de imediato, com estrépito: “incompreensível”, “espírito de esquerda”, “nenhum direito familiar se sobrepõe à segurança do país”.


A fórmula é eficaz porque apela ao instinto — mas é precisamente quando o instinto grita que a Constituição deve falar.


E o que ela diz, aqui e em qualquer democracia digna desse nome, é simples: a segurança nacional não vive contra a família, vive com ela.


Um Estado que se declara forte por negar a unidade familiar anuncia, sem perceber, uma fragilidade mais funda: a de já não saber para que serve o próprio poder.


A família não é um adorno humanitário das leis: é um ponto de apoio.


Antes de ser consagrada em códigos, existia na experiência elementar de proteger os pequenos, amparar os velhos, reconhecer no outro um vínculo que não é opção de ocasião.


Por isso, as constituições — a nossa e as que nos são comparáveis — erguem a família como bem a resguardar, mesmo quando o tema é migração, fronteira, ordem.


Não por ingenuidade, mas por prudência: separar à força o que a vida juntou é receita antiga para gerar desespero, violência e, ironicamente, insegurança.


O Tribunal não discutiu se o país deve controlar entradas, avaliar pedidos, exigir documentos.


Discutiu outra coisa: como o faz.


O “como” é a gramática que distingue a força justa da força bruta.


É aqui que mora a diferença entre um Estado que governa e um Estado que domina.


Se o “como” atropela garantias — prazos sem defesa, recursos esvaziados, reagrupamentos tratados como favor — a lei falha o exame da própria República.


E falha por uma razão que deveria unir, não dividir: ninguém é mais seguro num país que desvaloriza a palavra família, porque amanhã será outro direito a ceder ao medo da hora.


Fala-se, entretanto, em “invasão silenciosa”.


O termo é hábil: dá à inquietação uma imagem total e, por isso, dispensadora de pensar.


Mas o ofício de governar — e de legislar — é precisamente o contrário: é recusar atalhos fáceis quando está em causa a estrutura que nos mantém juntos.


Uma fronteira pode ser vigiada com rigor sem que, por isso, se empobreça a proteção de quem já vive connosco.


Um processo administrativo pode ser firme sem ser cego.


A autoridade pode dizer “não” sem precisar de humilhar, e pode dizer “sim” sem trair o país.


Convém também marcar outro ponto, tantas vezes deturpado: o Tribunal Constitucional não é um “partido togado”, é um travão deliberado.


A democracia madura instalou travões não por desconfiança da vontade popular, mas por respeito à sua própria volatilidade.


O voto decide rumos; a Constituição fixa fronteiras éticas e jurídicas para que, na pressa, não desfiguremos a casa.


Mudar a Constituição porque um acórdão não agrada é confundir projeto com impulso.


E um país que confunde projeto com impulso acorda sempre mais pobre do que se deitou.


Talvez a pergunta decisiva seja esta: que espécie de segurança desejamos?


A que se contenta com números de expulsões e portas trancadas, ou a que mede a sua solidez pelo modo como trata famílias reais, com crianças que amanhã sentarão numa carteira ao lado das nossas?


A primeira é fácil de anunciar e difícil de sustentar.


A segunda é exigente: pede meios, pede inteligência administrativa, pede tempo — e pede, sobretudo, a coragem de não transformar medo em doutrina.


A decisão do Tribunal e o veto presidencial não aboliram a ideia de fronteira nem a necessidade de ordem; obrigaram-nos a reescrever o como.


Isso é política em estado adulto. A lei volta ao Parlamento.


Cabe agora aos seus autores provar que conseguem proteger o país sem diminuir a sua própria estatura.


Se conseguirem, ganhamos todos: as forças de segurança com regras claras; as famílias com direitos reconhecidos; a sociedade com paz social que não é apenas ausência de crime, mas presença de justiça.


A grandeza de uma Constituição vê-se nos dias difíceis.


Hoje pediu-se ao país que olhasse para o limiar: o sítio onde a casa recebe quem chega, sem esquecer quem já cá está; o sítio onde a autoridade se afirma não por gritar mais alto, mas por cumprir o que prometeu ser.


É aí que se mede uma nação: no modo como defende sem desumanizar, e no modo como acolhe sem desistir de se proteger.


AC

Símbolo da Justiça Portuguesa
Balança da Justiça sobre um fundo cinzento, representando a imparcialidade e a força do Estado de Direito.

4 comentários

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Manoel
11 de ago.

O endeusamento do TC enquanto pilar da democracia plasmada no texto fundamental não o liberta da condição humana, ideologicamente comprometida. Uma votação 7-6 não é clarificadora. Tanto mais que o TC não representa hoje o alinhamento político da AR. E devia, na medida em que parte dos juízes são indicados pelos partidos. Aliás a mudança que vai ocorrer em agosto já deveria ter sucedido, estando alguns juízes em situação pouco constitucional. Seja como for é avisado que o Parlamento acolha as recomendações emanadas do TC.

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O Caderno
O Caderno
13 de ago.
Respondendo a

Manoel, agradeço o seu comentário. Para mim, o ponto essencial desta decisão do Tribunal Constitucional está em recordar que a segurança e a autoridade do Estado não se afirmam negando a unidade familiar, mas integrando-a na própria ideia de proteção. O Tribunal não discutiu se o país deve controlar entradas ou vigiar fronteiras, mas sim a forma como o faz — e é nesse “como” que se distingue a força justa da força bruta. Separar à força o que a vida juntou é receita antiga para gerar insegurança; proteger as famílias é proteger a coesão do país. É este o limite que a Constituição estabelece e que, a meu ver, deve ser preservado mesmo nos dias em que o instinto…

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Convidado:
09 de ago.

Como sempre, muito bem dito

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Maria
08 de ago.
Avaliado com 2 de 5 estrelas.

O texto é bom eu é que não estou dentro do assunto. Com a idade aprendi a pôr de lado os assuntos que menos me agradam para me concentrar nos outros.

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