A Constituição e o Limiar
- O Caderno

- 8 de ago.
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Segurança é uma casa com portas e fundamentos - não se ergue derrubando a família.
Há dias em que um país precisa de se ouvir a si próprio.
O despacho do Tribunal Constitucional foi um desses momentos.
Não trouxe fogo-de-artifício; trouxe coisa mais rara: um limite.
Disse, com a calma dos textos que nos sobrevivem, que a lei dos estrangeiros, tal como saiu do Parlamento, atravessou linhas que a própria República desenhou para se proteger de si mesma.
Não se trata de gostar ou não gostar de uma política: trata-se de saber se a vontade do dia cabe na moldura maior do direito.
Responderam-lhe, de imediato, com estrépito: “incompreensível”, “espírito de esquerda”, “nenhum direito familiar se sobrepõe à segurança do país”.
A fórmula é eficaz porque apela ao instinto — mas é precisamente quando o instinto grita que a Constituição deve falar.
E o que ela diz, aqui e em qualquer democracia digna desse nome, é simples: a segurança nacional não vive contra a família, vive com ela.
Um Estado que se declara forte por negar a unidade familiar anuncia, sem perceber, uma fragilidade mais funda: a de já não saber para que serve o próprio poder.
A família não é um adorno humanitário das leis: é um ponto de apoio.
Antes de ser consagrada em códigos, existia na experiência elementar de proteger os pequenos, amparar os velhos, reconhecer no outro um vínculo que não é opção de ocasião.
Por isso, as constituições — a nossa e as que nos são comparáveis — erguem a família como bem a resguardar, mesmo quando o tema é migração, fronteira, ordem.
Não por ingenuidade, mas por prudência: separar à força o que a vida juntou é receita antiga para gerar desespero, violência e, ironicamente, insegurança.
O Tribunal não discutiu se o país deve controlar entradas, avaliar pedidos, exigir documentos.
Discutiu outra coisa: como o faz.
O “como” é a gramática que distingue a força justa da força bruta.
É aqui que mora a diferença entre um Estado que governa e um Estado que domina.
Se o “como” atropela garantias — prazos sem defesa, recursos esvaziados, reagrupamentos tratados como favor — a lei falha o exame da própria República.
E falha por uma razão que deveria unir, não dividir: ninguém é mais seguro num país que desvaloriza a palavra família, porque amanhã será outro direito a ceder ao medo da hora.
Fala-se, entretanto, em “invasão silenciosa”.
O termo é hábil: dá à inquietação uma imagem total e, por isso, dispensadora de pensar.
Mas o ofício de governar — e de legislar — é precisamente o contrário: é recusar atalhos fáceis quando está em causa a estrutura que nos mantém juntos.
Uma fronteira pode ser vigiada com rigor sem que, por isso, se empobreça a proteção de quem já vive connosco.
Um processo administrativo pode ser firme sem ser cego.
A autoridade pode dizer “não” sem precisar de humilhar, e pode dizer “sim” sem trair o país.
Convém também marcar outro ponto, tantas vezes deturpado: o Tribunal Constitucional não é um “partido togado”, é um travão deliberado.
A democracia madura instalou travões não por desconfiança da vontade popular, mas por respeito à sua própria volatilidade.
O voto decide rumos; a Constituição fixa fronteiras éticas e jurídicas para que, na pressa, não desfiguremos a casa.
Mudar a Constituição porque um acórdão não agrada é confundir projeto com impulso.
E um país que confunde projeto com impulso acorda sempre mais pobre do que se deitou.
Talvez a pergunta decisiva seja esta: que espécie de segurança desejamos?
A que se contenta com números de expulsões e portas trancadas, ou a que mede a sua solidez pelo modo como trata famílias reais, com crianças que amanhã sentarão numa carteira ao lado das nossas?
A primeira é fácil de anunciar e difícil de sustentar.
A segunda é exigente: pede meios, pede inteligência administrativa, pede tempo — e pede, sobretudo, a coragem de não transformar medo em doutrina.
A decisão do Tribunal e o veto presidencial não aboliram a ideia de fronteira nem a necessidade de ordem; obrigaram-nos a reescrever o como.
Isso é política em estado adulto. A lei volta ao Parlamento.
Cabe agora aos seus autores provar que conseguem proteger o país sem diminuir a sua própria estatura.
Se conseguirem, ganhamos todos: as forças de segurança com regras claras; as famílias com direitos reconhecidos; a sociedade com paz social que não é apenas ausência de crime, mas presença de justiça.
A grandeza de uma Constituição vê-se nos dias difíceis.
Hoje pediu-se ao país que olhasse para o limiar: o sítio onde a casa recebe quem chega, sem esquecer quem já cá está; o sítio onde a autoridade se afirma não por gritar mais alto, mas por cumprir o que prometeu ser.
É aí que se mede uma nação: no modo como defende sem desumanizar, e no modo como acolhe sem desistir de se proteger.
AC




O endeusamento do TC enquanto pilar da democracia plasmada no texto fundamental não o liberta da condição humana, ideologicamente comprometida. Uma votação 7-6 não é clarificadora. Tanto mais que o TC não representa hoje o alinhamento político da AR. E devia, na medida em que parte dos juízes são indicados pelos partidos. Aliás a mudança que vai ocorrer em agosto já deveria ter sucedido, estando alguns juízes em situação pouco constitucional. Seja como for é avisado que o Parlamento acolha as recomendações emanadas do TC.
Como sempre, muito bem dito
O texto é bom eu é que não estou dentro do assunto. Com a idade aprendi a pôr de lado os assuntos que menos me agradam para me concentrar nos outros.