O Invisível que Ficou
- O Caderno

- 8 de ago.
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A herança sefardita vive em gestos e palavras que já esquecemos ter herdado.
Há heranças que não cabem nos arquivos nem nos museus. Estão na língua que falamos sem pensar, no modo como temperamos um prato, nas histórias que contamos à lareira.
A presença sefardita em Portugal não desapareceu com os éditos de expulsão — dissolveu-se no quotidiano, como sal na água.
Certas palavras que julgamos puramente portuguesas têm raízes no ladino ou em hebraico.
Expressões culinárias sobrevivem em receitas de peixe salgado, em doces de amêndoa e mel, em combinações de especiarias que atravessaram o Mediterrâneo para se fixarem nas nossas mesas.
Até alguns rituais domésticos, como acender velas à sexta-feira sem motivo religioso explícito, ecoam práticas de famílias que, em tempos, tiveram de ocultar a fé para sobreviver.
A Inquisição quis apagar sinais, mas acabou por os espalhar.
E esse paradoxo moldou um país que, sem saber, continua a repetir gestos sefarditas.
O invisível que ficou não é resíduo: é cimento cultural.
Ele mostra que a identidade nacional não é uma fortaleza, mas um tecido — e que cada fio, mesmo o que tentaram cortar, contribui para a sua resistência.
Reconhecer esta presença silenciosa não é exercício académico: é um ato de justiça para com a verdade e para connosco.
Porque só ao aceitar que o nosso “nós” é feito de muitos “outros” é que podemos evitar repetir a velha tentação de expulsar o que nos constrói.
AC




Com ascendencia do ramo paterno de cristãos novos e judeus praticantes até aos fim dos anos 60, reconheço a justeza do seu texto e comprovo-a com habitos alimentares que só já conheci em casas da familia.