As coisas que não cabem
- Alberto Carvalho - Narrador

- 27 de jul.
- 2 min de leitura
As coisas que não cabem
Há coisas que não cabem.
Não cabem em fotografias, não cabem em posts, não cabem em silêncios.
E, às vezes, também não cabem em nós.
Há dias em que levanto os olhos e vejo o mundo a correr — a exigir presença, opinião, resposta, urgência.
E eu… fico quieto.
Não é desinteresse.
Nem cansaço.
É outro nome que ainda não descobri.
Uma espécie de exaustão serena.
Uma vontade de não ser voz no coro.
Talvez seja velhice interior.
Ou apenas aquela lucidez triste de quem vê tudo a andar depressa demais.
Sei que devia escrever mais vezes.
Responder a cada pessoa que me escreve.
Agradecer com tempo e letras.
Mas não consigo.
Porque cada comentário bonito que recebo é como um abraço demorado — e eu tenho os braços ocupados a segurar uma vida inteira.
Escrevo devagar.
E com medo.
Porque sei o que se passa lá fora.
Sei que tudo hoje é medido: a velocidade, os likes, os cliques, os acessos.
E eu não tenho nada disso.
Tenho só palavras.
Palavras que às vezes me demoram mais do que o mundo permite.
Mas continuo.
Porque há coisas que não cabem.
E talvez escrever seja isso: tentar caber num texto aquilo que não cabe em mais lado nenhum.
A memória do meu avô a dizer-me que não se deve atravessar uma frase a correr.
A voz da minha mãe a perguntar-me se já comi.
A cadeira vazia à minha frente.
A página que ficou em branco ontem.
A fotografia que não tirei.
A resposta que não dei.
A ausência de alguém que ainda está vivo.
Tudo isto cabe aqui.
Tudo isto precisa de um lugar.
E este lugar — o caderno — não precisa de aplauso.
Só de tempo.
Quem lê até ao fim, talvez o saiba.
Talvez também esteja a segurar uma vida inteira com os braços ocupados.
E talvez esteja aqui, agora, comigo.
AC




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